03/05/12

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da porta do café via-se a rua    foi assim
que eu comecei por falar de ti aos meus amigos
como se fosses mais uma árvore a nascer
entre os carros da cidade

e para lá da rua    continuei    um cão
perdido sem coleira    murmuro ele de repente
a memória trazendo-me sem querer o nome
daquele romance do Cesbron que estava tão na moda
nesse tempo em que pensávamos que a literatura
ia salvar o mundo


muito possivelmente nem te lembras
que livro foi esse que então lemos juntos
e sublinhámos    e soubemos de cor    e se calhar
é bem melhor assim     nunca
se deve regressar aos livros onde fomos felizes
esta é   como deves saber   uma regra a não quebrar
em caso algum

olho agora para ti e sei que muitas estradas
envolveram de pó os passos que te procuravam
e as palavras nem sempre foram   concordo as

que teriam sido necessárias para que uma noite
o meu nome rompesse de ti como um sopro impuro
e fechasses os olhos à tímida recordação
do que em ti apressadamente
há tantos anos eu tinha deixado

mas nesse tempo os meus olhos
tinham lançado raízes por dentro de outros olhos
que me ensinavam como era perigoso
adormecer assim esmagada entre vozes
que nos obrigavam a repetir muitas vezes
que nunca se morre suficientemente perto do verão

e foi então que os meus silêncios se transformaram
em luminosos vocábulos de quem ensaiava
a correcta e surpreendente caligrafia
das palavras feitas à nossa imagem
que eu talvez tivesse um dia aprendido
no leite morno da tua língua
mas logo esquecera e ninguém me avisara que tudo
poderia recomeçar muitos anos depois
limpidamente e sempre pela primeira vez
e o tempo tornou-se tão inteiro e intocável
que eu não podia sequer imaginar
que a tua vida se desfazia em gotas de raiva e soro
ao longo de estilhaçados corredores

a tua vida
que há muito não passava pelos mapas da minha errância
mas que um dia se entrelaçara no meu sangue
e respirara ao ritmo do nosso desejo e a isso
alguém poderia ter chamado   quem sabe   destino
e agora se inscreve perfeitamente
na imagem definida daquele minúsculo oásis
entre sebes e laranjeiras bravas
que um dia habitei contigo
no desamparado deserto dos  nossos corpos
quando eu chegava e tu sabias
que a dor se tinha tornado de repente insuportável

hoje queria apenas que entendesses
que a alegria também pode ser    e pelos mesmos motivos
verdadeiramente insuportável

Alice Vieira
in Dois Corpos Tombando na Água, ed. Caminho

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