30/12/11

Revolução


Elas fizeram greves de braços caidos


Elas brigaram em casa 
para ir ao Sindicato e à Junta

Elas gritaram à vizinha que era  fascista

Elas souberam dizer
salário igual e creches e cantinas

Elas vieram para a rua de encarnado

Elas foram pedir para ali
uma estrada e canos de água

Elas gritaram muito

Elas encheram as ruas de cravos

Elas disseram à mãe e à sogra que
isso era dantes

Elas trouxeram alento e sopa
aos quartéis e à rua

Elas foram para as portas de armas
com os filhos ao colo

Elas ouviram falar de uma grande mudança
que ia entrar pelas casas

Elas choraram no cais 
agarradas aos filhos que vinham da guerra

Elas choraram
de ver o pai a guerrear com o filho

Elas tiveram medo e foram e não foram

Elas aprenderam a mexer nos livros de contas
e nas alfaias das herdades abandonadas

Elas dobraram em quatro um papel
que levava dentro uma cruzinha laboriosa  

Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa
a ver como podia ser sem os patrões

Elas levantaram um braço
nas grandes assembleias

Elas costuraram bandeiras e bordaram 
a fio amarelo pequenas foices e martelos

Elas disseram à mãe,
segure-me aqui os cachopos, senhora,
que a gente vai de camioneta a Lisboa
dizer-lhes como é 

Elas vieram dos arrabaldes
com o fogão à cabeça
ocupar uma parte de casa fechada

Elas estenderam roupa a cantar
com as armas que temos na mão

Elas diziam tu às pessoas com estudos
e aos outros  homens

Elas iam e não sabiam para onde, mas iam

Elas acendem o lume

Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado
São elas que acordam   pela manhã as bestas,
os homens e as crianças adormecidas.

Maria Velho da Costa

o nosso corpo é forma geométrica
moldável por excelência
seus ritmos de andamento variam
consoante teor de energia armazenado
-embora não haja uma relação de proporção directa-
corpo fustigado andantemente veloz
depósito cheio de energia?
Ou piloto automático?
Corpo macerado vagaroso
Depósito ausente de combustível?
Calibração entre as velocidades?
Carburação

B.B. Pásion - poemas das vísceras

24/12/11

O consumismo destrói o sagrado

A estação dos Natais comercializados chegou. Para quase toda a gente - fora os miseráveis , o que faz muitas excepções - é uma paragem quente e clara no Inverno cinzento. Para a maioria dos celebrantes de hoje, a grande festa cristã fica limitada a dois grandes ritos: comprar, de maneira mais ou menos compulsiva, objectos úteis ou não, e empaturrar-se a si e às pessoas da sua intimidade, numa mistura indestrinçável de sentimentos em que entram igualmente a vontade de dar prazer, a ostentação e a necessidade de se divertir. E não esquecemos os pinheiros, símbolos antiquíssimos que são da perenidade do mundo vegetal, sempre verdes, trazidos da floresta para acabarem morrendo ao calor dos fogões, e os teleféricos despejando esquiadores na neve inviolada. 
Embora não sendo nem católica (excepto de nascimento e tradição), nem protestante (excepto  por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Calendária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si as esperanças do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que "detesta a pobralhada". É a festa dos homens de boa vontade, como diria uma admirável fórmula que infelizmente já nem sempre se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda dos cantos da Idade Média que ajudou Maria no parto, até ao José aquecendo as fraldas do recém-nascido diante de um pequeno fogo, aos pastores cobertos de sebo mas julgados dignos da visita dos anjos. (...)
É a festa da  comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis, cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra, levando ao menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança hoje adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa de Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa neste momento o ponto do solstício de Inverno e nos arrasta a todos para a Primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do Sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esquecem.

Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse Grande Escultor, Difel, Lisboa, págs. 105 e 106.


20/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

III

a mulher do tecnocrata
acordou terrivelmente sonhadora. Com um vago
desejo.
Talvez não bem desejo,
apenas veleidade.

Não deve ser do valium.
O comprimido faz ainda mais efeito.

Sentada
com as pernas entreabertas
a cabeça pendida
perpendicular à torre
os olhos vêem o rio descendo
emanando o seu calor
o seu aroma
sua cor amarelada
(e o seu cheiro a mijo)
é consolador
o prazer de entre os rios
até ao topo da torre
no enfraquecimento do leito do rio
a torre ergue-se e ganha
condição bípede
Segue
Deixa o prazer
Amanhã é outro dia

B.B. Pásion - Poemas das vísceras - 26 Setembro 2008                

10/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

II

A mulher de um gestor público,
como um personagem muito complexo de Minkowski,
está e não está preocupada com o seu futuro.

A mulher do gestor público
não está preocupada com o futuro,
a não ser que um tremor de terra deite por terra
a sua conta bancária.

Poema Improvisado da Paisagem da Fotografia

A fotografia
Tinha uma paisagem
Árvores reflectidas
Azul e verde como imagem
Em águas paradas
Pareciam formar apenas um bloco...
Eram dois no entanto
A continuação das pernas dos elementos vegetais
Sobre o elemento líquido (a reflexão)
Assim de repente são
Gaiolas de buinho
Penduradas sobre elemento sideral
Elas podem dizer:
"Virem as minhas irmãs (árvores reflectidas)
de cabeça para baixo
se faz favor".
Bora lá árvores verdadeiras
Ser como são as gaiolas de buinho:
Tocar o céu com os pés na terra.

Exercício imagético:
Perante o enunciado tente construir o esboço da fotografia

B.B. Pásiom, poemas da leveza 

01/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

I



A mulher do dentista
sofre de super-abundância.

Os anos do dentista são super abundantes
em relação aos de mulher tão juvenil.

Entre todas as coisas possíveis e abundantes,
a mulher do dentista possui um acordeon,
meia dúzia de casacos de pele,
sapatos de pelica e mala cor marron.

A mulher do dentista,
além de possuir uma casa na praia,
um acordeon,
sapatos de pelica,
possui a abundância de um marido dentista.

Um marido dentista, nos dias que correm,
é uma extravagância.

Se sofre, pois, de economia sórdida,
faça à mulher uma corte romântica.

(continua)

in a preços de ocasião, eduarda chiote, ed. etc.

30/11/11

LIVE AID FASHION AID

Ao comer o meu bife de cogumelos,
penso, distraidamente,
na dieta das crianças que desmaiam de fome.

No ridículo exagero
da fome.

Escrupulosa, doentia, perfeccionista,
de início - escritor diletante e neurótico - ,
passados meses, é como dar autógrafos.

Penso,
distraidamente,
nessas crianças de um fantástico super-realismo
que exibem o furor das costeletas
em plena apoteose.

E tomo a decisão de visitar o Bob.

De emoção obesa e indolente,
ele sabe-me visceralmente insensível à tragédia
dos homens.

Ao comer o meu bife de cogumelos
penso no chocolate rançoso e no gruière
que o emigrante trouxe de Bruxelas
e na televisiva complacência,
nas queixas e impotência,
mas sempre,
sempre,
distraidamente.

A fome
é o quiproquó verbal dos que não morrem de
fome.

in a preços de ocasião, eduarda chiote, ed. &etc

20/11/11

O desespero é condição sine qua non
Das multidões
Ferramenta ágil de agitação
Capaz de levar à cegueira
Que é como quem diz
Levar à mais violenta revolta:
Catástrofe.
Esse desespero tem que estar
Bem consolidado no individuo
A par da sua formação materialista.
Se o desespero for com ela de mão dada
Já não é cegueira inebriada
Mas antes arma cruel de luta.

B.B. Pásion, poemas teóricos 

15/11/11

ESQUECER COMO

Esquecer como:

rosa
vinho
orgasmo

Esquecer como:

grito
ferida
raiva

Esquecer como:

pele
faca
lágrima

Esquecer como:

morte
dor
viagem

in Minha Senhora de Mim, Maria Teresa Horta, publicações D. Quixote

10/11/11

Não se pode matar a ideia a tiros de canhão nem amarrá-la.

Louise Michel
Há mães famintas
antes grávidas de fome
o poder da  multiplicação
é animal, ou antes, lógica
inflamada de natural.
Bem, de natural a convulsão
Ganha proporções um pouco sociais
Na ânsia de colmatar um
Desejo primário que é a fome
A mãe ganha em si ar
que vai transformar-se em
erva daninha própria para animais
que gostam de bom pasto

05/11/11


Um dia disseram-me:
"Agora podes pôr uma
televisão aqui".
Quem precisa de pôr
Uma televisão no - quando 
Se tem um teatro?
Assim em vez de se proceder
À linguagem teatral, pôr
Todos a fazer - procede-se à
Linguagem de pôr todos a 
não fazer nada. Estado vegetativo
Acordado de ver

01/11/11

Há algo mais tranquilo do que o sono
Dentro deste quarto interior!
Usa no peito um ramo -
E não  dirá o seu nome.

Alguns tocam-lhe, outros beijam-na -
Alguns afagam a sua mão impassível -
Possui uma gravidade simples
Para mim incompreensível!

Não choraria, se estivesse no seu lugar -
Que indelicado o soluçar!
Pode afugentar a tranquila fada
E fazê-la aos bosques regressar!

Enquanto os vizinhos de coração simples
Do "morto Recente" falam -
Nós - propensos à perífrase,
Notamos que os Pássaros se elevaram!

in ESTA É A MINHA CARTA AO MUNDO E OUTROS POEMAS, Emily Dickinson, ed. Assírio & Alvim
A normalidade
é igual a uma questão de
probabilidade
isto é
na linha sectorial
a quantidade maior
de pontos perfilados
devidamente equilibrados
constituem a maioria

28/10/11

CANÇÃO DE MATAR

Do dia nada sei

O teu amor em mim
Está como o gume
De uma faca nua
Ele me atravessa
E atravessa todos os dias
Ele me divide

Tudo o que em mim vive
Traz dentro uma faca
O teu amor em mim
Que por dentro me corta

Com uma faca limpa
Me libertarei
Do teu sangue que põe
Na minha alma nódoas

O teu amor em mim
De tudo me separa
No gume de uma faca
O meu viver se corta

Do dia nada sei
E a própria noite azul
Me fecha a sua porta

Do dia nada sei
Com uma faca limpa
Me libertarei.

in O Cristo Cigano, Sophia de Mello Breyner Andresen, ed. Caminho

25/10/11

a reciclagem
é boa em si
e para si
só reciclando-se ela
pode existir
e só a reciclarem-na
ela existe
não queremos existencialismos
patéticos
não gostamos de relativismos!
Não!
Não!
Gostamos verde + azul = roxo
Ou amarelo + magenta = laranja
Isto não é nada
Bom é sapateiras
E lagostins do Alqueva!

B. B. Pásion

20/10/11

isto é muito fácil tirar
tabaco da máquina mesmo
quando tens de pedir para
carregarem no botão do "on"
é bom sermos burgueses
termos dinheiro para jantar na 
cave 
até parece uma canção do Veloso
mas não é...
ter dinheiro para comprar
uma casa
ou coragem para ocupar 
uma herdade
ganas de mudar
sentir o mundo como
nosso
um projecto nosso...
a mudar
a transformar e viver
pisar com os pés todos
juntos formando circunferências 
sobre o globo terrestre 
com as mãos unidas
na unidade

in Debaixo do Bulcão poezine
Número 35 - Almada, Março 2009

19/10/11

quando era criança
e via produtos com rótulos espanhóis
pensava que era português mal escrito

B.B Pásion

15/10/11

Sem substâncias artificiais
ou seja
sem incutir substâncias produzidas
por mãos humanas ou andróginas
procura-se induzir o cérebro
a experimentar sensações-substância
acutilantes
Mas atenção, tem que ser
sem meter nada no corpo. Os sensores têm
de percorrer motivados
por auto-indução cerebral ao
êxtase!

B.B. Pásion - poemas da leveza

13/10/11

No cubículo de quatro paredes brancas
apenas há espaço para dormirmos duas
Isto porque o cubículo é algo pequeno
e eu estendida se rebolar faço duas!
Esse compartimento fica apartado
do ruído e da canção
por isso dá para dormir tão bem
É como uma caixa de hibernação
Entra-se  com o estômago quentinho,
tapa-se com a manta de retalhos
E então espera-se que o senhor que tudo apaga
chegue
Quando o sono chega é insuficiente...
Devia ser mais demorado ou mesmo eterno

B.B. Pásion - poemas da leveza

11/10/11

As Passas da Turquia

Tenho um copo da Turquia
Uma caixa de música made in Japan
Uma banana da Colômbia
Um copo de Portugal
Um prato de Moura
Umas chávenas da avó
Computador do estrangeiro
Caneta de Vila Franca de Xira
Uma garrafa da Serra
Carvão espanhol
Sabão azul e branco
Madeira do Sobral
Lixo num altar
Bandeiras na vasilha ao lado
Que por baixo de si
Tem a casa das formigas
Estas gostam
Da carne  das costeletas
Fazem rastilhos de centenas
Pequeninas atrás umas das outras
Vão até ao lava-loiça
Fazer uma excursão de fim-de-semana
Mas acabam no final
Por comer as minhas
Passas da Turquia

B.B. Pásion - poemas da leveza

09/10/11

Uma Poetisa e o Dinheiro (1) - Quartel General em Abrantes

Hoje, dia 15 de Março de 1998, só me apetece escrever sobre o dinheiro que posso vir a não ter.


Não posso escrever poemas porque sou um animal acossado na luta
pela sobrevivência. E, depois, uma adolescência passada a ler e a querer
ter namorados e a não ter namorados faz-me pensar que a literatura
é muito pouco importante.


Conto como vivo. O meu pai paga as contas da casa e dá-me uma 
mesada de 80 contos, E esta mesada só dura enquanto o meu pai
durar (o meu pai tem quase 80 anos). Por isso dou sempre esmola aos
pobres (ou intrujões) que me pedem dinheiro na rua e à porta da 
igreja de - -. Dou cem escudos no ofertório das missas e, às vezes,
vou à missa mais de uma vez por semana. Assim fico com algum
dinheiro para os drogados, velhos, sidosos, estropiados, cegos e --
do metro das ruas, das portas de igreja, de pastelarias, de casas de 
espectáculo.

Tentei começar a trabalhar em Janeiro, mas não consegui trabalhar.
Talvez por ser indisciplinada, talvez por estar deprimida. Por pensar
que sou indisciplinada e que, geralmente, estou deprimida, não
concorri às bolsas de criação literária atribuídas em  1997. Se
concorresse, era para escrever como é que as poetisas de todos os
tempos conseguiram o pão nosso de cada dia. Para o fazer tinha de 
investigar muito e um ano talvez não chegasse.

Sou poetisa publicada há catorze anos, mas é muito raro pagarem-me
os textos com dinheiro, pagam-me em géneros (livros, serigrafias), 
que não são nunca pão, Nodepe (caríssimo), Fluanxol, água, pêras,
costeletas de porco, gás, cuecas, pensos higiénicos, passe social, etc.

Ser poetisa, como me faz notar o poeta catalão Francesco --, dá-
me o direito de ser convidada a apoiar publicamente candidatos à
Presidência da República e a confessar na televisão o que como ao
pequeno-almoço, mas não me tem dado pão.

Por enquanto o meu pai está vivo, mas depois? Não somos ricos. O
meu pai recebe a reforma dele e metade da reforma da minha mãe
que já morreu.

O pão, o tecto, o chão, o passe social, o Nodepe, a camisa de noite, o
robe, os sapatos (há roupa boa e barata, mas os sapatos são tão caros
e gastam-se tão depressa) preocupam-me muito.

('Jornal do Fundão' n.º 2696, 24 de Abril de 1998, Fundão) 

Dor


A dor que se encrava em nós
Pode não ser voluntária
A nossa capacidade de auto-perdão
Fica aquém daquilo que podemos transformar
Os anos que decorrem não contribuem
Para minorar a dor
não fazem senão adensá-la
Aquilo que não depende de nós
mesmo que queiramos
Com força arranjar medidas de salvação
Ficam presas nas teias daquilo que, por um lado,
Não compreendemos como acontecem, e por outro lado,
Na obrigatória conformação dos factos.

08/10/11

Hipocrisia

Guardamos para nós aquilo que não queremos mostrar
Dizemos que simples gestos influenciam
Não os devemos demonstrar em público
Porque temos algo a salvaguardar
Pensamos que se o outro diz aquilo que não queremos ouvir
Chamamos de hipócrita porque faz para si uma coisa
Trivial
Mas que esconde do público
Simples actos pessoais que vão manchar a sua reputação
Mas que não deveria
Porque são gestos inofensivos
Contudo também nós que criticamos
Fazemos quando temos certos olhos
Que ordenaram e delimitaram
Favoreceram-nos em uma troca dialéctica
Não são esses olhos que nos ofertaram algo
É uma troca
Eles dão em troca da nossa dádiva
Ninguém deve nada a ninguém
É dialéctica a troca
Assim deve ser conceptualmente
Por isso também não devemos
Mimetizar aquilo que o outro faz sozinho
Longe dos olhares
Revelar-nos-emos assim em público como em privado
Deve ser assim na prática.

B.B. Pásion

07/10/11

Dói-me a barriga
Mas não grito
Anseio por hoje
Hoje ao fim
Chega o azul de meia-noite
Vamos reunir-nos
No salão
Para a tenebrosa sessão
Cantamos
Recitamos vamos então
Como a deusa
Que está
Com as mamas descobertas
Ela irradia
Ela é linda

B.B. Pásion - Poemas das Vísceras

05/10/11

ANOS QUARENTA, OS MEUS

De eléctrico andava a correr meio mundo
subia a colina ao castelo-fantasma
onde um pavão alto me aflorava muito
em sonhos à noite. E sofria de asma

Alma e ar reféns dentro do pulmão
(como um  chimpanzé que à boca da jaula
respirava ainda pela estendida mão).
Salazar três vezes, no eco da aula.

As verdiças tranças prontas a espigar
escondiam na auréola os mais duros ganchos.
E o meu coito quando jogava a apanhar
era nesse tronco do jardim dos anjos

que hoje ainda esbraceja numa árvore passiva.
Niqueis e organdis, espelhos e torpedos
acabou a guerra meu pai grita "Viva".
Deflagram no rio golfinhos brinquedos.

Já bate no cais das colunas uma
onda ultramarina onde singra um barco
para cacilhas e, no céu que ressuma
névoas águas mil, um fictício arco-

íris como que é, no seu cor-a-cor,
uma dor que ao pé doutra se indefine.
No cinema lis luz o projector
e o FIM através do tempo retine.

in POEMAS DE LUIZA NETO JORGE, LUIZA NETO JORGE, ed. Presença
Não podendo falar para toda a terra
direi um segredo a um só ouvido

in POEMAS DE LUIZA NETO JORGE, LUIZA NETO JORGE, ed. Presença
Ando
Inicio a correr
O meu corpo
Desfaz-se em matéria
Corro
Esvazio-me
Não fico aliviada
Fico o dia
Inteiro
Com a sensação
Do excremento
Que quer sair
Limpar-me por dentro
Digo:
“Só por dentro?!”

B.B. Pásion - Poemas das Vísceras

04/10/11

A noiva

Toalha preta
lenço de prata
do bouquet de rosas
sai uma andorinha
sem uma pata
a noiva tem a mão esquerda
arranhada pela gata
chupa o sangue com a língua
quando o noivo lhe enfiar o anel
no dedo
toalha preta
lenço de prata
duas gotas de sangue
cairão no vestido branco
a noiva tem um verme branco
na cabeça
com mil patas
toda a noite
bate com a cabeça na parede
toalha preta
lenço de prata
mas o verme não despega
chama a gata
e a gata arranha-a na mão esquerda
toalha preta
lenço de prata
duas gotas de sangue
cairão no lençol branco
a noiva tem um buraco
no pescoço
e no buraco cheio de água
uma rosa
presa com um arame
toalha preta
lenço de prata
duas pétalas de rosa
cairão na renda branca
de gola com goma
toalha preta
lenço de prata
do bouquet de rosas
sai uma andorinha sem uma pata
a andorinha voa à volta da noiva
até a fazer cair tonta no chão
toalha preta
lençol de prata
avoa avoa
em torno de toda a folha

in Quem Quer Casar Com a Poetisa?, ed. quasi


A PORTA APORTA

a porta roda ao invés da lua
a porta roda bússola enterrada ao invés dos olhos
a porta geme é um cão nocturno
a porta geme extinta na trela da noite
a porta areia
a porta caruncho pária de mar
a porta maré que vem e que vai que bate e que fecha
a porta com máscara de morte
a porta sem sorte
a porta joelho na alma das portas
a porta mulher da casa de passe
a porta manchou a manhã com o grito de porta
a porta enforcada no mastro da casa
a porta por asa
a porta roda
a porta sexo a vida toda
a porta tosca da madrugada pregos são estrelas mortas
a porta pregada
a porta leilão
a porta batente a porta aranha por coração
a porta tu
a porta eu
a porta ninguém na terra pequena
a porta roda
a porta geme
a porta facho
a porta leme

in POEMAS DE LUIZA NETO JORGE, LUIZA NETO JORGE, ed. Presença
O apartamento
É um compacto rectilíneo
Que suporta haveres
Homens comprimidos
Ligados por um cordão
Que lhes diz ser
A algema famélica
Que os engole no
Seu estômago de aço

B.B. Pásion - Poemas da Argamassa

03/10/11

A casa do bairro
Onde agora habitam
Dois camelos
Eles bebem a água
Da mesma vasilha
Encontraram-na no oásis
(e encheram-na)
Aquela água
Levaram-na para
Morar na casa
Onde agora habitam
Dois camelos

B. B. Pásion - Poemas da Argamassa

02/10/11

O Candidato

Antes de mais, tem as qualidades que procuramos?
Usa
Algum olho  de vidro, dentes postiços, muleta,
Uma braçadeira ou um gancho,
Peitos de borracha ou um sexo de borracha,

Costuras que mostrem o que lhe tiraram? Ah não? Então
Como podemos oferecer-lhe seja o que for?
Páre de chorar.
Abra a mão.
Vazia? Sim, vazia. Eis a mão

Que se quer ocupar, desejosa
De lhe trazer o chá e de fazer passar as dores de cabeça
E fazer o que lhe mandarem.
Casa com ela?
Tem garantia,

Há-de cerrar-lhe as pálpebras no fim
Desfazendo-se em dor.
Desse sal fazemos novo alento.
Reparo que está completamente despido.
Que me diz deste fato -

É preto e rígido mas não  cai nada mal.
Quer casar com isto?
É à prova de água e de estilhaços, à prova
De fogo e bombas que caiam no telhado.
Acredita-me, hão-de enterrar-te assim vestido.

Mas a tua cabeça, desculpa que te diga, está vazia.
Tenho remédio para isso.
Anda cá, amorzinho, sai do armário.
Então, que pensas disto?
Está em branco como papel para escrever

Daqui a vinte e cinco anos ela será de prata,
Daqui a cinquenta, de ouro.
Uma boneca de carne e osso, para onde quer que olhes.
Sabe coser, sabe cozinhar,
E fala, fala, fala.

Trabalha sempre, é do melhor que há.
Se tem um buraco põe-se um remendo.
Se se lhe vê um olho é uma imagem.
Olha rapaz, é a tua última oportunidade.
Porque não te casas com isto, com isto, com isto.

in Ariel, Sylvia Plath, ed. Relógio d'Água
Os bichos vão para a cave
Cedo
Preparam a sua convulsão
Carne azeda e vinho macio
Escorregam-se-lhe pelo estreito
Como ritual de preparação
Dos indigestos intestinos
Que preparam a artificial simbiose
Do estado dos bichos
A libertação tem haver
Com o consumo levado a cabo
Do enfartamento desnecessário
De aditivos alimentícios e alcoólicos

B. B. Pásion - Poemas da Boémia

01/10/11

No quadrado da varanda do prédio
Juntam-se corpos que se sentam
Ou que se encostam nas paredes de pedra
Conforme o tempo passa as pessoas vão
Congelando e ficando mais múmias
No fim da noite já não se mexem
Não há comunicação
O ar que vem de cima da varanda aberta
Sopra-lhes o suspiro de fim de noite
Que os empurra para casa

B.B. Pásion - Poema das Boémia