30/10/13

MULHERES

Há nas mulheres
o sono duma ausência
como uma faca
aberta sobre os ombros

à qual a carne adere
impaciente
cicatrizando já durante
o sonho

E há também
o estar impaciente
calarmos impacientes
todo o corpo

Sorrir não devagar
claramente
lugares inventados sobre
os olhos

E há ainda em nós
o estar presente
diariamente calmas
e seguras

mulheres demasiado
serenamente
nas casas nas camas
e nas ruas

E como toda esta herança
não chegasse
como se ainda quiséssemos aumentá-la
fechamos os braços de cansaço
como se da vida
chegasse o inventá-la

E se do sono
nos vem o esquecimento
quantas insónias
cansamos nós por dentro

in Poesia Reunida ("Jardim de Inverno")
Maria Teresa Horta

25/10/13

Histriónicas







Albert Parsons
caminhou para a morte
cantando Annie Laurie;
não teve aquele outro
uma rosa no casaco - e
ou seria rosada -
dramatizando-se -

Rosa ensanguentada
haste
pendendo de uma vazia
lapela de casaco,
ou seria um cravo cor-de-rosa
rósea cor macia como a alvorada
luzindo ténue sobre a forca,
faixa de canção prateada
embrulhada em chuva
Uma inunda manhã em Chicago nos anos oitenta -
perdurará, para além dos horizontes.

Lola Ridge

05/10/13

Fundo de Desemprego

Uma borboleta, um colar de coral
o rapaz não quer saber de  competência.
Está por agora aqui
amanhã pode sentar-se noutro lado
não tem opinião sobre coisa nenhuma
e nada nem ninguém o desconvocam
do seu concílio com a indiferença.
Veio de Colónia e na volta é semelhante
suprimiu hamburgers 
com pescadores ao lado.
O resvale da tarde sobre rochas
não lhe prega na alma
precipícios.
Um ocado onde há melancolia
desperta-lhe a contragosto
recessões
e perde tempo a descobrir ao sol
a loura rapariga inanimada
enquanto apalpa
na bolsinha a erva.
No outro dia é com resignação
que se saúdam
e a tarde nos contunde
mineral.

Fátima Maldonado

30/09/13

Os frutos frios por fora

A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassora.

O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.

No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.

25/09/13

O Regino

O Regino era um homem sem trabalho;
de tanto padecer fez-se mendigo
e levava já de ofício vinte anos.
De cor sabia o bater das portas,
os degraus das catedrais
e as pedras de todos os caminhos;
polia com as costas as esquinas,
aquecia ao sol suas sardinhas.
Tinha calos de pedir esmola,
a mão curtida pelos ventos
e uma ferida no centro da palma
por onde já caíam as moedas.
Fora seu ofício o de mineiro
porém tossia quando ia à mina
e o médico aconselhou "mudança de ares";
mendiga desde então
pelas aldeias da serra.

Gloria Fuertes
tradução de Egito Gonçalves

20/09/13

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-os uma mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

15/09/13

Este vai-se, aquele vai-se...

Este vai-se, aquele vai-se,
e todos, todos se vão:
Galiza sem homens ficas
que te possam trabalhar.
Tens, em troca, órfãos e órfãs
e campos de solidão;
e mães que não têm filhos
e filhos que não têm pais.
E tens corações que sofrem
longas ausências mortais.
Viúvas de vivos e mortos
que ninguém consolará.

Rosalía de Castro
Tradução de Ernesto Guerra da Cal

10/09/13

O campesinato o operariado

Não só possuir a terra, mas toda a invenção
sobre toda a invenção. Não só a transformação,
mas o prazer desta aparente espontânea imutável natureza
e a permanente criação duma prática e da teoria.
O campesinato ignora o que ignora.
Desejemos que cumpra, depois, outros desejos.
A cultura não existe em estado de espontaneidade,
nem o popular poderá ser um valor em si, só há cultura
resultante de cultura, e não das árvores
dos dialectos, dos complexos de máquinas.

05/09/13

ÉVORA

ao amigo vindo da luminosa
Itália, a minha cidade, como eu
soturno e triste...

Évora! Ruas ermas sob os céus
cor de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as suas míseras vaidades!

Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!

... Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minh'alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina e moça...

Florbela Espanca
in Sonetos

30/08/13

INFÂNCIA

A Felismina, a criada da minha tia-bisavó
Ermelinda, fazia uns bolinhos muito bons chamados
felisminas. Tenho pena de não ter ficado com a receita.
Apetecia-me agora felisminas.
A Tia Ermelinda vivia na 5 de Outubro. O prédio
tinha um elevador normal na escada. E tinha um
elevador dentro de casa só para os vizinhos poderem
andar entre as casas deles sem ir à escada. A porta
deste elevador, em casa da Tia Ermelinda, estava
a meio do corredor, dentro de casa. Eu achava isto
mágico.

Adília Lopes
in Andar a Pé

20/08/13

CANTO DAS IMAGENS

Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante de Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza aos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico.

30/10/93
Fiama Hasse Pais Brandão

15/08/13

I write only because
There is a voice within me
That will not be still

Sylvia Plath

30/07/13

O Pastor

I
Era um homem
um homem
um homem.
Depois da sua era
Será para sempre a lembrança
A versão de uma lenda terrível.
II
Era um pastor que pastoreara
A grande promessa.
O pastor que conclamara
O horizonte e a agulha do astrolábio.
Era um pastor e sua trouxa do deserto.
Um pastor
e sua litania de queda e de nada.
III
Da festa era a inapagável memória.
Era a gravata da demência no Equador.
Era o ar entupindo os poros das casas.

25/07/13

Truca-Truca

Já que o coito - diz Morgado - 
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado - 
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Natália Correia

20/07/13

UM PORTUGUÊS ADOÇADO

A língua que se fala
No Brasil
É um português adoçado:

A sua dureza
Trabalhada
No engenho dos séculos
Deu essa doçura
Essa macieza pura.

A língua é o tigre
O falante o domador
Os séculos o percurso
O caminho a eterna descoberta.

Como num largo oceano
Há sempre novas vagas.

Ana Hatherly
In Itinerários, 2003, pg. 100

10/07/13

Medo

Só quero que olhes nos olhos, sem medo
nada a temer, olha nos olhos,
respira...
Deixa-te levar,
sente a vida sem medo e avança.
Recorda o passado, vive
o que não viveste, o que querias viver,
sem medo.

Ana Almaça

30/06/13

Penélope

1
Penélope
é uma aranha
que faz
uma teia
a teia é a Odisseia
de Penélope

2
Penélope está
sempre
sentada

3
Ulisses é abstracto
Penélope é concreta
a teia é abstracta
e concreta

4
Penélope casa-se
com Homero
ulisses fica a ver
navios

Adília Lopes

In Obra 

25/06/13

DESCOBRIMENTO

Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor de navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Sophia de Mello Breyner

In Obra Poética III

20/06/13

Acrobacias

sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores –
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
assim juntando as nossas
perdas eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.

Ana Paula Inácio

In Telhados de Vidro 3

10/06/13

Esta é uma declaração de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo.

Clarice Lispector
in De escrita e Vida

05/06/13

Alguns gostam de poesia

Alguns -
quer dizer que nem todos.
Nem sequer a maior parte mas sim uma minoria.
Não contando as escolas onde se tem que,
e quanto a poetas,
dessas pessoas, em mil, haverá duas.

Gostam -
mas gosta-se também de sopa de esparguete,
dos galanteios e da cor azul,
do velho cachecol,
brindar à nossa gente,
fazer festas ao cão.

De poesia -
Mas o que é isso a poesia?
Muitas e vacilantes respostas
já foram dadas à questão.
Por mim não sei e insisto que não sei
e esta insistência é o que me salva.

Wislawa Szymborska
in Paisagem com Grão de Areia, Relógio de Água

30/05/13

Caveira Precoce

Menino
Caveira precoce
Em teus olhos enormes
Escorre uma lágrima
Leite sagrado
Do seio ausente

Menino
Sem riso e sem choro
Que podes dizer
Aos homens que fazem a guerra?
A infância nunca pode falar
E tem voz

Lisboa, Março 2003
Matilde Rosa Araújo

20/05/13

Dez Chamamentos ao Amigo

VII
Essa lua enlutada, esse desassossego
A convulsão de dentro, ilharga
Dentro da solidão, corpo morrendo
Tudo isso te devo. E eram tão vastas
As coisas planejadas, navios,
Muralhas de marfim, palavras largas
Consentimento sempre. E seria dezembro.
Um cavalo de jade sob as águas
Dupla transparência, fio suspenso
Todas essas coisas nas pontas dos teus dedos
E tudo se desfez no pórtico do tempo
Em lívido silêncio. Um sol que não vejo

Também isso te devo.

Hilda Hilst

15/05/13

QUADRADA

TELEGRAFIA SEM FIM

Onde o sonho do profundo se adormece
E as flores do enquanto me seduzem
Neste vento que me paira e acontece,
O tempo do cansaço me escurece
E das estrelas instantes se conduzem
Geométricas e finas linhas frias
Cadentes de sonhadas geografias.
Ó meu cantar além dentro de mim
Ó meu saber nos dedos o que vejo,
Eu sei traçar a negação do fim
No sempre que se aquece para quem
Se cria e se inventa de desejo.

Salette Tavares
20 Anos de Poesia portuguesa, Círculo de Poesia Moraes Editores

10/05/13

A Pegada do Yeti

Um dia eu te direi o nome do silêncio
o pronome da cólera
Esta chuva destrói a cor
dos nossos olhos

Eu te direi a luz do sussurro do vento
aberto na boca

É preciso ensinar as palavras
com paciência
guiá-las docemente           são crianças
grávidas e serenas

Um dia eu te direi a face do papel
onde erguerei a casa
o jardim fecundado
pela gota de sangue

Eu te direi como a ternura quebra

o fósforo se esvai

Maria Alberta Menéres 
20 Anos de Poesia portuguesa, Círculo de Poesia Moraes Editores

05/05/13

TEMPO DE NOTÍCIA

vós
enviaram-me a vós
transportando nos cabelos
esperanças clandestinas
de muralhas quotidianas
sem bandeiras metálicas

aguardem-me no aço dos olhos
contrabando de tristeza
me enviaram de notícias
nos pulsos

30/04/13


Há mulheres que
Jantam bolinhos de coco
- brasil, madeira, angola –
E são acometidas por um prazer esfíngico

Bárbara Bardas 

25/04/13

20/04/13

A Joaquim em seu Olimpo

Chora o Olimpo
o valoroso herói:
caiu junto aos portões
da cidade de Atenas.

Caronte não o deseja:
não aceita as moedas,
a sua luz mais forte
ofuscaria a treva
da memória...

15/04/13

AMOR NO MEIO DO AR

AGARRA-ME!
Amo-te, confio em ti,
amo-te
AGARRA-ME!
agarra o meu pé esquerdo, o meu pé
direito, a minha mão!
aqui estou eu pendurada pelos dentes
90 metros acima, no ar, e
AGARRA-ME!
aqui vou eu, voando sem asas,
sem pára-quedas, fazendo uma dupla tripla
super-cambalhota salto mortal
AQUI MESMO SEM
REDE E
AGARRA-ME!
agarraste-me!
amo-te!

agora é a tua vez

Lenore Kandel
in ANTOLOGIA DA NOVÍSSIMA POESIA NORTE-AMERICANA, Editorial Futura

10/04/13

AQUI

Suponhamos para
a morte
os dias da semana

A tranquila paz pequena
que nos lembra
um pássaro sedento
então uma gaivota
ou um pouco de raiva
que não uma revolta

05/04/13

O DILÚVIO E A ÁRVORE(*)

Quando a tempestade satânica chegou e se espalhou
No dia do dilúvio negro lançado
Sobre a boa terra verdejante
"Eles" contemplaram.
Os céus ocidentais ressoaram com explicações de regozijo:
"A árvore caiu!
O grande tronco está esmagado! O dilúvio deixou a árvore sem vida!"

30/03/13

CANTO DO HOMEM SOBRE O VERDUGO

Vergado pelo jugo
não cede
compete

não dorme o verdugo

na rua o futuro
parado
suspende

sustém e suspeita
tão raso na pele a fome que é
seita

25/03/13

nunca
ter estado
suficientemente
próximo

nunca
te ter
fixado
longamente

nunca
ter
festejado

20/03/13

COSMOCÓPULA

I

Membro a pino
dia é macho
submarino
é entre coxas
teu mergulho
vício de ostras.

II

O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro  e cheiroso como o loendro.

Natália Correia
in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA ERÓTICA E SATÍRICA, Ed. Antígona

15/03/13

A morte deixa-nos saudades, aos que ficam,
Do que já está perdido
Ignoramos o seu Cuidado
Como se não tivesse nascido.


Pelos  seus lugares de outrora, nós
Seguimos como Indivíduos 
que algo perderam, a procura
É tudo o que resta, agora -


in ESTA É A MINHA CARTA AO MUNDO E OUTROS POEMAS, Emily Dickinson, ed. Assírio & Alvim

10/03/13

O Nascimento de Blimunda

Passados doze meses
Eis que a mãe elefanta e o pai elefante
Olham um para o outro
E enfastiados, cansados
De uma longa espera
Prevêem o que irá suceder

Um grande dilúvio
Vindo mesmo do ventre
Da mãe elefanta

Corajosa,
E sem nada temer
Aceita aquilo que tanto esperavam

05/03/13

Escrita Automática X


Era uma vez um país
que tinha um teatro nacional
nesse teatro decidiu o seu encenador
fazer qualquer coisa como Condomínio de Rua
Peça essa cujo texto aborda as temáticas da pobreza e da exclusão
O preço de entrada, ou o ingresso se quisermos simplificar
Era nada mais, nada menos do que… Alimentos
E o slogan era algo não pouco pomposo
como TEATRO POR ALIMENTOS
Projecto esse resultante entre esse tal teatro
e uma instituição de caridade social
Juntando assim o útil ao agradável
o espectador fica contente porque pagou uma lata de atum
(não de salmão fumado, não vem na listagem dos alimentos mais solicitados da instituição) para ir ao teatro (e ao nacional!)
E os artistas (?) ficam contentes porque tiveram público
(não sei se tiveram, não fui. Não troco alimentos por teatro)
E a sociedade em geral – a dita civil – fica contente também
Cumpre-se assim o dever de se ajudar o próximo

28/02/13

Escrita Automática IX


Adenda a Escrita Automática VII:

Esqueci-me de referir que em relação às captações apoteóticas de espasmos e falta de serotonina no cérebro e a demais maleitas não surgem porque sim, um, dois, três e já está, feito consequência cuja origem se desconhece a razão. As condições materiais e os seus desenvolvimentos são a causa. As condições materiais existentes, as exteriores a esse alguém, bem como as condições subjectivas em que se desenvolvem tais condições.

Bárbara Bardas 

25/02/13

Escrita Automática VIII


Meus filhos:

Poesia é palavra
Escrita ou dita
Material ou oral
Donde tudo se propaga
É a partir da conjugação
Da gramática e da sintaxe
Que determinada imagem
Nasce no universo pessoal de cada um
Para depois se alastrar a um imaginário colectivo

O resto é conversa!

Bárbara Bardas

20/02/13

Escrita Automática VII


Carta Ferida

Querida Frida:

Tantas vezes penso em ti
Enquanto jazo na minha cama
As recordações que tenho de ti
De há dez anos a esta parte
Mutaram-se de esfumados contornos
A marcas bestialmente marcadas
Na minha memória
Tal é a similitude de nossas vidas
Que ainda não te tatuei nas minhas costas (pensei numa pintura s/ título, a do macaquinho ou a das araras, ou então a “O marxismo dará saúde aos doentes”)
Por dois motivos: um é que nunca tenho dinheiro
E o outro é que não sei se posso tatuar sobre vitiligo
Penso em ti após as múltiplas operações que fizeste
E recordo-me de ti, na tua cama de dossel
Crivada em dor e o único passaporte que tinhas era a pintura
Bem sei que uma poliomielite e um trespassamento quase longitudinal
Não é a mesma coisa que um acumular de anos de captações apoteóticas de espasmos
Catadupas vertiginosas, personalidades múltiplas, e falta de serotonina e apatias letárgicas. Não é a mesma coisa que um latejar cerebral constante em que o meu crânio luta para se manter formal. Não é a mesma coisa que a chamada de atenção entre um lado racional e um lado infinito de derivações de palavras projectadas, a ecoar e a lançaram-se num espaço específico de amontoamento de coisas que não existem. Tal como tu, daquilo que me sirvo para não sucumbir são dos dedos. No meu caso para escrever, visto que não é possível conter tudo dentro de apenas um quilo e tal de massa encefálica. Os dedos. As palavras. As palavras são dedos na minha boca. Não importa se são polegares, se indicadores, se anelares. Mindinhos não, não ocupam todo o espaço bucal. Podem ser as tuas, ou as tuas. Ora umas, ora outras. Porque mesmo quando são umas, para mim, são também outras. Mas isto tem pouca importância. Não passam de entumecimentos.
O varão de autocarro que te atravessou – outra semelhança – já viste?! Eu porém, não precisei dessa hecatombe, para observar o mesmo resultado.
Ao contrário de ti não me deu para nenhuma derivação esquerdista no que toca a fall in love, ou a acampar no amor (?). Sou muito leal às minhas convicções, não que tu não o tenhas sido, desculpa. Mas aí estávamos nos anos trinta e muita coisa estava por dizer, não é?!
Tampouco o meu pai era alemão, e a minha mãe mexicana. São os dois portugueses, da cidade (que foi industrial) de Al-Mahadan. Isso não impede que não pense no teu cabelo negro de mapuche, à semelhança do de minha mãe, com os seus traços de índia. Eu sou mais para o caucasiana. Ou nas tuas fartas sobrancelhas ligadas como unas e indivisíveis, símbolo do teu perfeito semblante. Na exuberância da tua afirmação, pesquisa e reafirmação cultural de um povo macerado pelos opressores visível ora no teu trabalho, ora na opção estética quando fazias aquelas tranças sobre a nuca, ou punhas aqueles vestidos garridos.
Da minha cama, também doente, apartada do contacto com o resto do mundo, preciso de arranjar mecanismos para perante o limite das duas, uma, ou ceder ou inverter. E quer-me parecer que na imediação irreversível da queda final, o melhor a fazer é uma vertical. E assim estamos agora, nós as três em agonia perfeita a rechaçar-nos contra as agruras que é subir à terra. O rechaçar constante, tão constante que a noção de tempo torna-se em algo que não é contabilizável, nem sequer materializável. Mesmo os segundos estão fora deles próprios. Assim como as sinapses estão umas fora das outras, em mapas paralelos completamente desorganizados no espaço, quanto mais no tempo… Este rechaçar causa-me uma exaustão que, penso, também a tenhas sentido.
Bem, resta-me então (já estou a perder o automatismo) despedir-me. Oh, tu não me conheces Kahlo, já me estava a esquecer disso. Sou a Andreia e tenho dois pseudónimos. Estou no cabo dos trinta, a dobrá-lo. Falta um mês para fazer anos e falta um número de dias que eu desconheço quantos serão para recomeçar. Visto que agora estou apenas a aprender a andar. Ou a aprender a projectar o andar.
Até lá uso-me das palavras, melhor, dos dedos.

Um abraço do nordeste do Atlântico.

Bárbara Bardas

15/02/13

Escrita Automática VI


Era uma vez uma terra
Muito distante que ficava                       lá              lá               longe
Onde o mundo terminava e
Um outro começava

Era uma vez uma terra
Onde os apaixonados afluíam
Com visões quentes
Do novo mundo

Era uma vez uma terra
Onde os apaixonados não viam
crias a nascer
Porém muitos viam a dar-se à terra

Era o Paulinho a desaparecer no rio,
Eram os enforcados, e os envenenados
Eram os destruidores maxilo-faciais

Era uma vez uma terra
Onde os apaixonados cravavam
A sua força numa terra estéril
Onde a aplicação da alavanca deles
Era tão brava que os remos
Do barco que comandavam
Crispavam-se na terra
Até esta se tornar em líquido navegável

Pó/Espuma
Espuma/pó

A eterna antítese                     lá             lá             longe
Numa terra (que em muitas vezes que era)
Onde não só o tempo não passou como não existiu.

Só o espaço
E as fotografias do Zambrano

Bárbara Bardas

10/02/13

Escrita Automática V

Eh lá!
Era uma vez alguém
Que antes das 24 horas do dia
Que vira um ano para o outro
Pensou
Que as suas resoluções
Foram tomadas antes da hora
(muitas - ! -24 horas totalizadas, antes)

Mas, isso também
Pensou esse alguém
Não é motivo para
Não estabelecer novos pressupostos

Esse alguém pensou:

Agora é só
uma questão aritmética
Soma-se os pressupostos da resolução
A uma nova
Com novos pressupostos
E estão assim criados
Os mecanismos
Para as novas horas
Em que viramos os 365 dias
À medida dos pressupostos!

Bárbara Bardas

05/02/13

Escrita Automática IV

Era uma vez alguém
Que nas imediações
De uma gestação normal
Não paria

Bárbara Bardas

30/01/13

Há um corpo que cai. Na terra, onde se dilui com a água, correspondendo ao espasmo gravitacional que o choque produz. A física  nunca nos deixa com falta de espanto pela sua irremediável certeza. São leis criadas pela cadência do fôlego vital. E o corpo retrai-se em forma circular, a forma perfeita que define as curvas do tempo. Membro a membro. Poro a poro. O inominável nome do corpo respira num ritmo regular, tal como se de regularidade fosse feita a sua extensão. O corpo não se deixa cair apenas pela força da gravidade. Também se deixa cair pela vontade. Para depois se levantar. E caminhar. Passo a passo.

Ângela Ribeiro 

25/01/13

BALADA DO PAÍS QUE DÓI

O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai
português sai
português dói

Ana Hatherly

In De Palavra em Punho – Antologia Poética da Resistência – De Fernando Pessoa ao 25 de Abril, org. José Fanha, ed. Campo das Letras

20/01/13

CAMPONESES

E ainda, ainda e sempre
esta queixa dou ao vento:
os que semeiam e regam
e fazem podas e enxertos,
os que cortam e carregam
debaixo de um sol de fogo
a melancia rosada,
o melão que cheira a céu,
ainda e sempre, todavia,
não têm "canto de chão".

Se o tivessem, não vagueavam
como a lanugem ao vento,
e se eu também o tivesse
não erraria como eles,
porque nasci, ouve bem,
pró amor, para o prazer
de semear milho que canta,
de espreitar os medronheiros
ou de ferver cada tarde
compotas sabendo a céu.

Mas foi em vão que em menina
descasquei a fruta ao sol
e em vão empilhei cachos
nas suas pequenas caixas,
e em vão espreitei as courelas
de medronheiros com dono,
porque os meus pais não tiveram
a terra dos seus avós,
e não fui feliz, ó corça,

e choro mesmo sem corpo,
sem ver as doze montanhas
que me velavam o sono,
ao dormir e acordar
com a fala de cem hortos
e com a sílaba imensa
do rio dentro do meu sonho.

Gabriela Mistral 
in Antologia poética

15/01/13


Na impossibilidade de encontrar um léxico adequado
Ou na incapacidade de encontrar um tal léxico
Direi apenas que há coisas para as quais não haverá nenhum léxico
E ficam assim, as coisas, deixadas à percepção subjectiva de quem as vive

Bárbara Bardas

10/01/13

VENHO NO CAMINHO DE VOLTA

1. se em altos cimos julguei albergar-me
é mais solitária a queda em que me acho.
lambida porém até ao fim com exigência.


2. já venho no caminho de volta tranquilo
sosseguem recuperei-me. ainda que aqui
neste ponto onde estou seja nulo meu ficar.


3. é fértil quand-même este estarmos?
amigos meus que não tenho nomeio só
há fumo-cortina aquém janela o lado de cá.


4. e além do mais exíguas as paredes todas
absurdamente exangues e caiadas
à espera de uma janela de magritte.


5. venho é verdade na vertente deste lado
contida a queda lambo-a até ao fim:
projecção minha já no sopé vê-me como desço.


6. se tivesse podido alguém viria comigo:
mas quem previsto de medos se não detém?


Wanda Ramos
in A JOVEM POESIA PORTUGUESA/1, ED. LIMIAR

05/01/13

Andreia Indica As Dores

enganei-me –
não há o viver a mesma coisa duas vezes
mesmo quando se instala a paranóia
do sofrimento antecipado revisto à
luz de experiências antigas
há sim desejos de relampagueares 
inspirados em acontecimentos com um
grau de probabilidade escasso

o inesperado, a descoberta, o construir, o assumir a verdade
= variáveis de indicadores 

Bárbara Bardas