30/09/13

Os frutos frios por fora

A vida está cada vez mais cara
no meu tempo a vida
era mais em conta
fazia menos calor
as cidades não mudavam de lugar
corria uma brisa, como uma vassora.

O fruto, um autómato surpreendido.
Desprendeu-se da casca, que viu?
Um autocarro, um avião, um submarino.
Os frutos frios por fora
são por dentro aquecidos a electricidade.
Os frutos davam frutos, flores, brinquedos.

No meu tempo o rio corria limpo
como um corredor novo
nadávamos nus
uns pelo meio dos outros
extraíamos um amante do vulcão mais próximo.

25/09/13

O Regino

O Regino era um homem sem trabalho;
de tanto padecer fez-se mendigo
e levava já de ofício vinte anos.
De cor sabia o bater das portas,
os degraus das catedrais
e as pedras de todos os caminhos;
polia com as costas as esquinas,
aquecia ao sol suas sardinhas.
Tinha calos de pedir esmola,
a mão curtida pelos ventos
e uma ferida no centro da palma
por onde já caíam as moedas.
Fora seu ofício o de mineiro
porém tossia quando ia à mina
e o médico aconselhou "mudança de ares";
mendiga desde então
pelas aldeias da serra.

Gloria Fuertes
tradução de Egito Gonçalves

20/09/13

Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
E uma alma para ir à escola
E um letreiro que promete
Raízes, hastes e corola.

Dão-os uma mapa imaginário
Que tem a forma de uma cidade
Mais um relógio e um calendário
Onde não vem a nossa idade.

Dão-nos a honra de manequim
Para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos o prémio de ser assim
Sem pecado e sem inocência.

15/09/13

Este vai-se, aquele vai-se...

Este vai-se, aquele vai-se,
e todos, todos se vão:
Galiza sem homens ficas
que te possam trabalhar.
Tens, em troca, órfãos e órfãs
e campos de solidão;
e mães que não têm filhos
e filhos que não têm pais.
E tens corações que sofrem
longas ausências mortais.
Viúvas de vivos e mortos
que ninguém consolará.

Rosalía de Castro
Tradução de Ernesto Guerra da Cal

10/09/13

O campesinato o operariado

Não só possuir a terra, mas toda a invenção
sobre toda a invenção. Não só a transformação,
mas o prazer desta aparente espontânea imutável natureza
e a permanente criação duma prática e da teoria.
O campesinato ignora o que ignora.
Desejemos que cumpra, depois, outros desejos.
A cultura não existe em estado de espontaneidade,
nem o popular poderá ser um valor em si, só há cultura
resultante de cultura, e não das árvores
dos dialectos, dos complexos de máquinas.

05/09/13

ÉVORA

ao amigo vindo da luminosa
Itália, a minha cidade, como eu
soturno e triste...

Évora! Ruas ermas sob os céus
cor de violetas roxas... Ruas frades
Pedindo em triste penitência a Deus
Que nos perdoe as suas míseras vaidades!

Tenho corrido em vão tantas cidades!
E só aqui recordo os beijos teus,
E só aqui eu sinto que são meus
Os sonhos que sonhei noutras idades!

Évora!... O teu olhar... o teu perfil...
Tua boca sinuosa, um mês de Abril,
Que o coração no peito me alvoroça!

... Em cada viela o vulto dum fantasma...
E a minh'alma soturna escuta e pasma...
E sente-se passar menina e moça...

Florbela Espanca
in Sonetos