28/11/16

Dois fragmentos finais (de A Terceira Miséria)

32.
Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia,
Essa que dá a volta e ilumina
O que, por um instante, a empunhou.
Oh, os amigos, os abandonados,
Esses, os destinados ao extermínio,
Esses os belos despojados, nus,
Os que, mesmo nascendo no Inverno,
Pouco sabem do frio, gente que dorme
Na sombra do meio-dia, ouvindo o canto
Das cigarras, o canto sobre o qual
Hesíodo escreveu. Gente do Sul,
Gente que um dia se desnorteou.


33.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.


Hélia Correia

26/08/16

Quiero una huelga donde vayamos todos,
Una huelga de brazos, de piernas, de cabellos,
Una huelga naciendo en cada cuerpo.
Quiero una huelga
De obreros
De palomas
De choferes
De flores
De técnicos
De ñinos
De médicos
De mujeres.
Quiero una huelga grande
Que hasta el amor alcance.
Una huelga donde todo se detenga,
El reloj
Las fábricas
El plantel
Los colegios
El bus
Los hospitales
La carretera
Los puertos.
Una huelga de ojos, de manos y de besos,
Una huelga donde respirar no sea permitido
Una huelga donde nazca el silencio
Para oír los pasos
del tirano que se marcha.

Gioconda Belli.

05/08/16

Help   Help
Help   I feel life coming closer
When all I want is to die

Marilyn Monroe

01/08/16

a gosto

Tudo que eu nunca te disse, dentro destas margens.
A curriola consolava.
O assunto era sempre outro.
Os espiões não informavam direito.
A intimidade era teatro.
O tom de voz subtraía um número.
As cartas, quando chegavam, certos silêncios,
nunca mais.
Excesso de atenção varrido para baixo do capacho.
Risco a lápis sobre o débito. Vermelho.
Agora chega. Agora, aqui, de repente, de
propósito, de batom,
leio: "Contas Novas", em letras plásticas.
Três variações de assinatura.
Três dias para o livro de cheques desta agência.
Demito o agente e o atravessador.
Felicidade se chama meios de transporte.
Saída do cinema hipnótico. Ascensão e queda e
ascensão e queda
deste império mas vou abrir um lacre.
Antes disso, um sus: pousa aqui. Ouve: "Como
em turvas águas de enchente..."
É lá fora. Espera.

Ana Cristina César

04/04/16

Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo

Adília Lopes,
in Um Jogo bastante perigoso, 1985.
Dobra - Poesia Reunida 1983-2014

13/03/16

REVOLUÇÃO E MULHERES DE NOVO (uma re-leitura da Maria Velho da Costa)

1. RECONSTITUIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas são cinco milhões, o dia nasce, elas abrem os estores. Elas cortam o pão e fazem café. Elas escrevem a divisão de tarefas para o resto da semana. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas fazem panelas de sopa que congelam em pequenas caixas de plástico para vários dias. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças. Elas enchem lancheiras e pastas de escola. Elas fazem três máquinas com os lençóis e as camisas que hão-de sujar-se outra vez. Elas aspiram o chão e correm com os insectos para que não venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas fazem contas complicadas para saber onde são os supermercados mais baratos. Elas contam cêntimos. Elas criam páginas de facebook onde vendem os velhos cachecóis de malha que a avó lhes ensinou a fazer. Elas trocam tutoriais sobre comida japonesa. Elas fazem limpezas em cinco casas diferentes e mais dois escritórios. Elas sairam de casa às 4 da manhã. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o autocarro e o barco. Elas já contam hoje 17 horas de trabalho. Elas pousam o casaco nas costas da amiga e trocam saudades em crioulo de países mais quentes. Elas têm habilitações a mais para trabalhar naquela loja. Elas não fizeram o nono ano porque na altura a mãe precisava que elas fossem trabalhar. Elas pousam os sacos das compras e abrem a porta com a mão vermelha. Elas acendem o lume. Elas mexem o arroz com um garfo. Elas enchem os pratos. Elas pousam o alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama. Elas também dormem.

17/02/16

Os Cravos Rubros

Quando ao negro cemitério eu for
Irmão, coloque sobre sua irmã,
como uma última esperança,
alguns cravos rubros em flor.
Do império nos últimos dias
quando as pessoas acordavam,
seus sorrisos eram rubros cravos
nos dizendo que tudo renasceria.
Florescerão nas sombras
de negras e tristes prisões.
Vão e desabrochem junto ao preso sombrio
e lhe diga o quanto sinceramente o amamos.
Digam que, pelo tempo que é rápido,
Tudo pertence ao que está por vir
Que o dominador vil e plácido
Também pode morrer como o dominado.

Loise Michel