29/03/12

ESPECTRO DE GUERRA

Meu pai, preso e torturado em 1953, andava esquisito
e cochichava muito com minha mãe
à noitinha na varanda.

Às vezes, ouvia a palavra guerra e a palavra Nigéria
e a palavra Biafra.

De repente o aeroporto ficou maior, a cidade aumentou
as ruas ganharam novo movimento.

Aviões chegavam e partiam, partiam e chegavam
muitos aviões.

Homens altos e brancos, vestindo calções falavam na praça
uma língua estranha.

Homens altos, cabelos vermelhos, pintinhas na cara
falavam na praça uma estranha língua.

Homens altos e negros vestindo calções andavam na praça
dizendo yes.

A rua do Rosário, que tinha má fama, passou a ser muito
mais animada.

E na escola, o lanche passou a ter corned beef e milk shake.
Gostávamos tanto de milque chaque que o comíamos em
pó, sem ser batido, às escondidas.

À tardinha, incríveis madres, madres negras, negras madres,
passeavam na avenida aqueles meninos. Eram pequenos
como nós, mas eram muito magros aqueles meninos.

Um dia fui ao hospital e vi esqueletos. Eram pequenos
como nós e eram esqueletos. Só tinham cotovelos olhos
e joelhos.
Estavam deitados nas camas, muito quietos, presos
a uns fios com balões de vidro.

Eram muitos e vinham de noite nos aviões.

Não sei quantos ainda se lembrarão de São Tomé.

Quantos depois terão ingressado nas forças armadas?

Sei que certos poemas juntam os versos como se os
deitassem numa vala comum.

Certos poemas sentem dó da metáfora, trancam a porta
na cara da rima.

São vítreos olhos em flácidos corpos.

O sangue na pedra, a fisga tombada, uma tíbia
partida.

Ou a enxuta memória de quem  não sofreu, não morreu -
apenas olhou.

E gravou a visão do demónio no quintal.

in Lima, Conceição; A Dolorosa Raiz do Micondó, ed. Caminho

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