29/03/12

ESPECTRO DE GUERRA

Meu pai, preso e torturado em 1953, andava esquisito
e cochichava muito com minha mãe
à noitinha na varanda.

Às vezes, ouvia a palavra guerra e a palavra Nigéria
e a palavra Biafra.

De repente o aeroporto ficou maior, a cidade aumentou
as ruas ganharam novo movimento.

25/03/12

GRAMÁTICA DA 1ª PESSOA

(em Londres, um "eat in or take away")
It's only me
respondi à empregada de café
quando me quis sentar

Sou só eu
mais ninguém
só eu aqui descentrada do mundo
neurótica e distópica
em curtos arremedos grosseiros
e vulgares

It's only me
a pedir um chá só ou só um chá
que a sintaxe de nós
permite estas permutas subtis
a inglesa já não
que just a tea pode bem ser
mas não a lonely tea

Sou só eu lonely me
só quero um chá
mais nada
e mais ninguém

Ana Luísa Amaral
in MINHA SENHORA DE MIM, ed. quetzal

24/03/12

O último reduto

na escuridão da câmara
a lembrança do bater
de ondas duma praia distante
as náuseas, os vómitos
são os primeiros reflexos
das palavras ditas
são a irreversibilidade
dos actos a seguir

B.B Pásion

20/03/12

QUE RIO VEM FORÇAR A ENTRADA DESTA CASA?

falo a fio de solidões urdidas de silêncios.
permitam que vos diga de como expurgada
me retomo diariamente na cidade.         e porque
repiso ainda estas exactas propostas pisadas
e porque não servem as palavras este desafio.

repto de que passos na pele por onde
não irrompem apaziguadas manhãs.    de que
águas por sorver sem eu ter sede agora.

de monólogo que necessariamente em mim recai
com a língua árdua de cigarros sobrepostos
enquanto a memória não cede.            enquanto se projecta.

digo: que rio vem forçar a entrada desta casa?


Wanda Ramos
in A JOVEM POESIA PORTUGUESA/1, ED. LIMIAR

16/03/12

Óbidos (Josepha)*


Se não hesitei quando pela torre ecoou o sino

porque vou hesitar perante o abismo

entre espaldares de árvores tridentes da ramagem simples
ao sol seco.

12/03/12

A Billie Holiday, Cantora

Era de noite e no quarto aprisionado em escuridão
apenas o luar entrara, sorrateiramente,
e fora derramar-se no chão.
Solidão. Solidão. Solidão.

08/03/12

MULHER

Mulher
Século XXI
Continuas
Escrava
Mineira
Telefonista
Prostituta
Tu te encantas
com a vida
Engenheira
Poeta
Operária agrícola
Intelectual
Mulher-a-dias
Continuas a não
Deixar de ser
Fruto do tempo
Se vives diferente
Terás de pagar
Não sabes como
A dívida
Dos teus dias
Independentes
Não serão nunca
Enquanto as outras
E os outros não
Te mirarem
Soberba e igual

B.B. Pásion

02/03/12

POSSE

Vem cá! Assim, verticalmente!
Achega-te... Docemente...
Vou olhar-te... E, no teu olhar, colher
promessas do que quero prometer,
até à síncope do amor na alma!
Colemos as mãos, palma a palma!
A minha boca na tua, sem beijo...
Desejo-te, até o desejo
se queixar que dói.

E sou tua, assim, como nenhuma foi!

Leonor de Almeida
in ANTOLOGIA DE POESIA PORTUGUESA ERÓTICA E SATÍRICA, Ed. Antígona