20/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

III

a mulher do tecnocrata
acordou terrivelmente sonhadora. Com um vago
desejo.
Talvez não bem desejo,
apenas veleidade.

Não deve ser do valium.
O comprimido faz ainda mais efeito.


Inesperadamente, às onze da manhã, descobre
que tem alma
e presta uma atenção especial à sua alma.

Esta coisa profusa, 
transbordante,
é, pois, uma alma.

A sua não se identifica com as partes rumorosas,
clandestinas, do corpo.
As mãos. Os braços. Ou as pernas.
Quando não,
poderia atenuar um ou outro acidente.

A sua 
está no olhar. Por isso não pode vê-la.
No Liceu, ensinaram-lhe que o olho que vê, não
vê a si mesmo.

A mulher do tecnocrata
descobre este segredo: tem uma alma que dilata
o mundo e a sua gesticulação elementar.
Com poder sobre as palavras cegas,
o espaço sólido.

Fica desconcertada com a revelação. Fascinada;
decerto.

Os objectos são auto-eróticos.
Por exemplo, o telefone. Abandonado,
não passa de um telefone.
O mundo é imperfeito,
catatónico.

O que supera o slid, é acredite, a alma,
Manoel de Oliveira.

Mas por onde terá andado tanto, tanto tempo,
a sua alma,
incapaz de entender a volúpia de um telefone,
a cutânea delícia
e finura de um maple?

Terá acordado criativa esta manhã?

Ah, a banalidade não é incurável! Espantoso
como os móveis respiram!

E este insecto, poisado sob a planta? Não é
a luminosidade,
a confusão sonora,
a intoxicação pelo hashish,
o pensamento poético? Seu ou da planta?

Seja como for
é urgente libertar a modéstia,
a obediência passiva das plantas.

A sua alma está hoje empenhada em recuperar
a mitologia das plantas. A inculcar nelas
a mórbida,
extrema,
verdadeira obsessão de plantas.

Podia escrever um diário
mas recriá-las
é etéreo, precioso, romântico, 
delicadíssimo.

A mulher do tecnocrata não tem alma cruel.
Colhê-las-á com o instrumento mais hábil do mais 
hábil cirurgião. Depositá-las-á na secretária
do marido.

Vê-o já chegar
pegar meticulosamente na sua alma,
ele, que não tem propensão para o talento lírico
mas para a prosa simples, realista,
e colocá-la num vaso de cristal.

A mulher do tecnocrata sente-se preste
a chorar. É realmente de uma grande amabilidade
o gesto de depositar a sua alma
num jarro de flores.

A sua alma doce e susceptível.

De momento, está longe de imaginar a sua alma apodrecendo
no cesto dos papéis.

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