09/10/11

Uma Poetisa e o Dinheiro (1) - Quartel General em Abrantes

Hoje, dia 15 de Março de 1998, só me apetece escrever sobre o dinheiro que posso vir a não ter.


Não posso escrever poemas porque sou um animal acossado na luta
pela sobrevivência. E, depois, uma adolescência passada a ler e a querer
ter namorados e a não ter namorados faz-me pensar que a literatura
é muito pouco importante.


Conto como vivo. O meu pai paga as contas da casa e dá-me uma 
mesada de 80 contos, E esta mesada só dura enquanto o meu pai
durar (o meu pai tem quase 80 anos). Por isso dou sempre esmola aos
pobres (ou intrujões) que me pedem dinheiro na rua e à porta da 
igreja de - -. Dou cem escudos no ofertório das missas e, às vezes,
vou à missa mais de uma vez por semana. Assim fico com algum
dinheiro para os drogados, velhos, sidosos, estropiados, cegos e --
do metro das ruas, das portas de igreja, de pastelarias, de casas de 
espectáculo.

Tentei começar a trabalhar em Janeiro, mas não consegui trabalhar.
Talvez por ser indisciplinada, talvez por estar deprimida. Por pensar
que sou indisciplinada e que, geralmente, estou deprimida, não
concorri às bolsas de criação literária atribuídas em  1997. Se
concorresse, era para escrever como é que as poetisas de todos os
tempos conseguiram o pão nosso de cada dia. Para o fazer tinha de 
investigar muito e um ano talvez não chegasse.

Sou poetisa publicada há catorze anos, mas é muito raro pagarem-me
os textos com dinheiro, pagam-me em géneros (livros, serigrafias), 
que não são nunca pão, Nodepe (caríssimo), Fluanxol, água, pêras,
costeletas de porco, gás, cuecas, pensos higiénicos, passe social, etc.

Ser poetisa, como me faz notar o poeta catalão Francesco --, dá-
me o direito de ser convidada a apoiar publicamente candidatos à
Presidência da República e a confessar na televisão o que como ao
pequeno-almoço, mas não me tem dado pão.

Por enquanto o meu pai está vivo, mas depois? Não somos ricos. O
meu pai recebe a reforma dele e metade da reforma da minha mãe
que já morreu.

O pão, o tecto, o chão, o passe social, o Nodepe, a camisa de noite, o
robe, os sapatos (há roupa boa e barata, mas os sapatos são tão caros
e gastam-se tão depressa) preocupam-me muito.

('Jornal do Fundão' n.º 2696, 24 de Abril de 1998, Fundão)