20/02/13

Escrita Automática VII


Carta Ferida

Querida Frida:

Tantas vezes penso em ti
Enquanto jazo na minha cama
As recordações que tenho de ti
De há dez anos a esta parte
Mutaram-se de esfumados contornos
A marcas bestialmente marcadas
Na minha memória
Tal é a similitude de nossas vidas
Que ainda não te tatuei nas minhas costas (pensei numa pintura s/ título, a do macaquinho ou a das araras, ou então a “O marxismo dará saúde aos doentes”)
Por dois motivos: um é que nunca tenho dinheiro
E o outro é que não sei se posso tatuar sobre vitiligo
Penso em ti após as múltiplas operações que fizeste
E recordo-me de ti, na tua cama de dossel
Crivada em dor e o único passaporte que tinhas era a pintura
Bem sei que uma poliomielite e um trespassamento quase longitudinal
Não é a mesma coisa que um acumular de anos de captações apoteóticas de espasmos
Catadupas vertiginosas, personalidades múltiplas, e falta de serotonina e apatias letárgicas. Não é a mesma coisa que um latejar cerebral constante em que o meu crânio luta para se manter formal. Não é a mesma coisa que a chamada de atenção entre um lado racional e um lado infinito de derivações de palavras projectadas, a ecoar e a lançaram-se num espaço específico de amontoamento de coisas que não existem. Tal como tu, daquilo que me sirvo para não sucumbir são dos dedos. No meu caso para escrever, visto que não é possível conter tudo dentro de apenas um quilo e tal de massa encefálica. Os dedos. As palavras. As palavras são dedos na minha boca. Não importa se são polegares, se indicadores, se anelares. Mindinhos não, não ocupam todo o espaço bucal. Podem ser as tuas, ou as tuas. Ora umas, ora outras. Porque mesmo quando são umas, para mim, são também outras. Mas isto tem pouca importância. Não passam de entumecimentos.
O varão de autocarro que te atravessou – outra semelhança – já viste?! Eu porém, não precisei dessa hecatombe, para observar o mesmo resultado.
Ao contrário de ti não me deu para nenhuma derivação esquerdista no que toca a fall in love, ou a acampar no amor (?). Sou muito leal às minhas convicções, não que tu não o tenhas sido, desculpa. Mas aí estávamos nos anos trinta e muita coisa estava por dizer, não é?!
Tampouco o meu pai era alemão, e a minha mãe mexicana. São os dois portugueses, da cidade (que foi industrial) de Al-Mahadan. Isso não impede que não pense no teu cabelo negro de mapuche, à semelhança do de minha mãe, com os seus traços de índia. Eu sou mais para o caucasiana. Ou nas tuas fartas sobrancelhas ligadas como unas e indivisíveis, símbolo do teu perfeito semblante. Na exuberância da tua afirmação, pesquisa e reafirmação cultural de um povo macerado pelos opressores visível ora no teu trabalho, ora na opção estética quando fazias aquelas tranças sobre a nuca, ou punhas aqueles vestidos garridos.
Da minha cama, também doente, apartada do contacto com o resto do mundo, preciso de arranjar mecanismos para perante o limite das duas, uma, ou ceder ou inverter. E quer-me parecer que na imediação irreversível da queda final, o melhor a fazer é uma vertical. E assim estamos agora, nós as três em agonia perfeita a rechaçar-nos contra as agruras que é subir à terra. O rechaçar constante, tão constante que a noção de tempo torna-se em algo que não é contabilizável, nem sequer materializável. Mesmo os segundos estão fora deles próprios. Assim como as sinapses estão umas fora das outras, em mapas paralelos completamente desorganizados no espaço, quanto mais no tempo… Este rechaçar causa-me uma exaustão que, penso, também a tenhas sentido.
Bem, resta-me então (já estou a perder o automatismo) despedir-me. Oh, tu não me conheces Kahlo, já me estava a esquecer disso. Sou a Andreia e tenho dois pseudónimos. Estou no cabo dos trinta, a dobrá-lo. Falta um mês para fazer anos e falta um número de dias que eu desconheço quantos serão para recomeçar. Visto que agora estou apenas a aprender a andar. Ou a aprender a projectar o andar.
Até lá uso-me das palavras, melhor, dos dedos.

Um abraço do nordeste do Atlântico.

Bárbara Bardas

2 comentários: