Carta Ferida
Querida Frida:
Tantas vezes penso em ti
Enquanto jazo na minha
cama
As recordações que tenho
de ti
De há dez anos a esta
parte
Mutaram-se de esfumados
contornos
A marcas bestialmente
marcadas
Na minha memória
Tal é a similitude de
nossas vidas
Que ainda não te tatuei
nas minhas costas (pensei numa pintura s/ título, a do macaquinho ou a das
araras, ou então a “O marxismo dará saúde aos doentes”)
Por dois motivos: um é
que nunca tenho dinheiro
E o outro é que não sei
se posso tatuar sobre vitiligo
Penso em ti após as
múltiplas operações que fizeste
E recordo-me de ti, na
tua cama de dossel
Crivada em dor e o único
passaporte que tinhas era a pintura
Bem sei que uma
poliomielite e um trespassamento quase longitudinal
Não é a mesma coisa que
um acumular de anos de captações apoteóticas de espasmos
Catadupas vertiginosas,
personalidades múltiplas, e falta de serotonina e apatias letárgicas. Não é a
mesma coisa que um latejar cerebral constante em que o meu crânio luta para se
manter formal. Não é a mesma coisa que a chamada de atenção entre um lado
racional e um lado infinito de derivações de palavras projectadas, a ecoar e a lançaram-se
num espaço específico de amontoamento de coisas que não existem. Tal como tu,
daquilo que me sirvo para não sucumbir são dos dedos. No meu caso para
escrever, visto que não é possível conter tudo dentro de apenas um quilo e tal
de massa encefálica. Os dedos. As palavras. As palavras são dedos na minha
boca. Não importa se são polegares, se indicadores, se anelares. Mindinhos não,
não ocupam todo o espaço bucal. Podem ser as tuas, ou as tuas. Ora umas, ora
outras. Porque mesmo quando são umas, para mim, são também outras. Mas isto tem
pouca importância. Não passam de entumecimentos.
O varão de autocarro que
te atravessou – outra semelhança – já viste?! Eu porém, não precisei dessa
hecatombe, para observar o mesmo resultado.
Ao contrário de ti não me
deu para nenhuma derivação esquerdista no que toca a fall in love, ou a acampar no amor (?). Sou muito leal às minhas
convicções, não que tu não o tenhas sido, desculpa. Mas aí estávamos nos anos
trinta e muita coisa estava por dizer, não é?!
Tampouco o meu pai era
alemão, e a minha mãe mexicana. São os dois portugueses, da cidade (que foi industrial)
de Al-Mahadan. Isso não impede que não pense no teu cabelo negro de mapuche, à
semelhança do de minha mãe, com os seus traços de índia. Eu sou mais para o
caucasiana. Ou nas tuas fartas sobrancelhas ligadas como unas e indivisíveis,
símbolo do teu perfeito semblante. Na exuberância da tua afirmação, pesquisa e
reafirmação cultural de um povo macerado pelos opressores visível ora no teu
trabalho, ora na opção estética quando fazias aquelas tranças sobre a nuca, ou
punhas aqueles vestidos garridos.
Da minha cama, também
doente, apartada do contacto com o resto do mundo, preciso de arranjar
mecanismos para perante o limite das duas, uma, ou ceder ou inverter. E quer-me
parecer que na imediação irreversível da queda final, o melhor a fazer é uma
vertical. E assim estamos agora, nós as três em agonia perfeita a rechaçar-nos
contra as agruras que é subir à terra. O rechaçar
constante, tão constante que a noção de tempo torna-se em algo que não é
contabilizável, nem sequer materializável. Mesmo os segundos estão fora deles
próprios. Assim como as sinapses estão umas fora das outras, em mapas
paralelos completamente desorganizados no espaço, quanto mais no tempo… Este
rechaçar causa-me uma exaustão que, penso, também a tenhas sentido.
Bem, resta-me então (já
estou a perder o automatismo) despedir-me. Oh, tu não me conheces Kahlo, já me
estava a esquecer disso. Sou a Andreia e tenho dois pseudónimos. Estou no cabo
dos trinta, a dobrá-lo. Falta um mês para fazer anos e falta um número de dias
que eu desconheço quantos serão para recomeçar. Visto que agora estou apenas a
aprender a andar. Ou a aprender a projectar o andar.
Até lá uso-me das
palavras, melhor, dos dedos.
Um abraço do nordeste do
Atlântico.
Bárbara Bardas