30/04/12

CANTO OBSCURO ÀS RAIZES

Em Libreville
não descobri a aldeia do meu primeiro avô.

Não que me tenha faltado, de Alex,
a visceral decisão.
Alex, obstinado primo
Alex, cidadão da Virgínia
que ao olvido dos arquivos
e à memória dos griots Mandinga
resgatou o caminho para Juffure,
a aldeia de Kunta Kinte - 
seu último avô africano
primeiro na América.


Digamos que o meu primeiro avô
meu último continental avô
que da margem do Ogoué foi trazido
e à margem do Ogoué não tornou decerto

O meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas, quem sabe, talvez, Abessole

O meu primeiro avô
que não morreu agrilhoado em James Island
e não cruzou, em Gorée, a porta do inferno

Ele que partiu de tão perto, de tão perto
Ele que chegou de tão perto, de tão longe

Ele que não fecundou a solidão
nas margens do Potomac

Ele que não odiou a brancura dos algodoais

Ele que foi sorvido em chávenas de porcelana
Ele que foi compresso em doces barras castanhas
Ele que foi embrulhado em chiques papéis de prata
Ele que foi embalado em caixinhas

O meu concreto avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas talvez, quem sabe, Abessole

O meu oral avô
não legou aos filhos
dos filhos dos seus filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido.

Na curva onde aportou
a sua condição de enxada
no húmus em que atolou
a sua acossada essência
no abismo que saturou
de verde a sua memória
as águas melancolizam como fios
desabitadas por pirogas e hipopótamos.

São assim os rios das minhas ilhas
e por isso eu sou a que agora fala.

Brotam como atalhos os rios
da minha fala
e meu trazido primeiro avô
(decerto não foi Kunta Kinte,
porventura seria Abessole)
não pode ter inventado no Água Grande
o largo leito do seu Ogoué.

Disperso num azul sem oásis
talvez tenha chorado meu primeiro avô
um livre, longo, inútil choro.

Terá confundido com um crocodilo
a sombra de um tubarão.

Terá triturado sem ilusão
a doçura de um naco de mandioca.
Circunvagou nas asas de um falcão.

Terá invejado a liquidez de caudas e barbatanas
enquanto o limo dos musgos sequestrava os seus pés
e na impiedosa lavra de um vindoura tempo
emergia uma ambígua palavra 
para devorar o tempo do seu nome.

Aqui terás testemunhado
o esplendor do pôr do sol, o luar, o arco-íris.
Decerto terá pressentido a calidez dos pingos
nas folhas das bananeiras.
E terá sofrido no Equador o frio da Gronelândia.

Mas não legou aos estrangeiros filhos
e aos filhos dos filhos dos estrangeiros filhos
o nativo nome do seu grande rio perdido.

Por isso eu, a que agora fala,
não encontrei em Libreville o caminho para a aldeia de Juffure.

Perdi-me na linearidade das fronteiras.

E os velhos griots
os velhos griots que detinham os segredos
de ontem e de antes de ontem

Os velhos griots que pelas chuvas contavam
a marcha do tempo e os feitos da tribo

Os velhos griots que pelas chuvas contavam
a marcha do tempo e os feitos da tribo

Os velhos griots que dos acertos e erros
forjavam o ténue balanço

Os velhos griots que da ignóbil saga
guardavam um recto registo

Os velhos griots que na íris da dor
plantavam a raiz do micondó
partiram
levando nos olhos o horror
e a luz da sua verdade e das suas palavras.
Por isso eu que não descobri o caminho para Juffure
eu que não dançarei sobre o pó da aldeia do meu primeiro avô

meu último continental avô
que não se chamava Kunta Kinte mas talvez, quem sabe, Abessole

Eu que em cada porto confundi o som da fonte submersa
encontrei em ti, Libreville, o injusto património que chamo casa:

estas paredes de palha e sangue entrançadas,
a fractura no quintal, este sol alheio à assimetria dos prumos,
a fome do pomar intumescida nas gargantas.

Por isso percorri os becos
as artérias do teu corpo
onde não fenecem arquivos
sim palpita um rijo coração, o rosto vivo
uma penosa oração, a insana gesta
que refunda a mão do meu pai
transgride a lição de minha mãe
e narra as cheias e gravanas, os olhos e os medos
as chagas e desterros, a vez e a demora
o riso e os dedos de todos os meus irmãos e irmãs.

Que nenhum idioma nos proclame ilhéus de nós próprios
vocábulo que não és
Mbanza Congo
mas podias ser
Que não és
Malabo
poderias ser
Que não és
Luanda
e podias ser
Que não és 
Kinshasa
nem Lagos
Monróvia não és, podias ser.

Nascente e veia, profundo ventre
conheces a estrutura que sabota os ponteiros:
novos sobas, barcos novos, o conluio antigo.

E consomes a magreza dos celeiros
num bazar de retalhos e tumultos
Petit Paris!
Onde tudo se vende, se anuncia
onde as vidas baratas desistiram de morrer.

Medram quarteirões de ouro
nos teus poros - diurnos, desprevenidos.
Medra implacável o semblante das mansões
Medram farpas na iníquia muralha
e um taciturno anel de lama em seu redor.

A chuva tema agora a cadência de um tambor
outro silêncio se ergue
no vazio dos salões das coiffeuses.

E no rasto do tam-tam revelarei 
o medo adolescente encolhido nas vielas
beberei a sede da planta no teu grão.

Eu que trago deus por incisão em minha testa
e nascida a 8 de Dezembro
tenho de uma madona cristã o nome.

A neta de Manuel da Madre de Deus dos Santos Lima
que enjeitou santos e madre
ficou Manuel de Deus Lima, sumu sun Malé Lima
Ele que desafiou os regentes intuindo nação - 
descendente de Abessole, senhor de abessoles.

Eu que encrespei os cabelos de san Plentá, minha três vezes avó

e enegreci a pele de san Nôvi, a soberana mãe do meu pai

Eu que no espelho tropeço
na fronte dos meus avós...

Eu e o temor do batuque da puíta
o terror e fascínio do cuspidor de fogo

Eu e os dentes do pãuen que da costa viria me engolir
Eu que tão tarde descobri em minha boca os caninos do antropógo...

Eu que tanto sabia mas tanto sabia
de Afonso V o chamado Africano
Eu que drapejei no promontório do Sangue
Eu que emergi no paquete Império
Eu que dobrei o Cabo das Tormentas
Eu que presenciei o milagre das rosas
Eu que brinquei a caminho de Viseu
Eu que em Londres, aquém de Tombuctu
decifrei a epopeias dos fantasmas elementares.

Eu e minha tábua de conjugações lentas
Este avaro, inconstruído agora 
eu e a constante inconclusão do meu porvir

Eu, a que em mim agora fala.

Eu, Katona, ex-nativa de Angola
Eu, Kalua, nunca mais em Quelimane
Eu, nha Xica, que fugi à grande fome
Eu que libertei como carta de alforria
este dúbio canto e sua turva ascendência.

Eu nesta lisa, escarificada face
Eu e nossa vesga, estratificada base
Eu e a confusa transparência deste traço.

Eu que degluti a voz do meu primeiro avô
que não se chamava Kunta Kinte
mas talvez, quem sabe, Abessole

Meu sombrio e terno avô
Meu inexorável primeiro avô
que das margens do Benin foi trazido
e às margens do Benin não tornou decerto

Na margem do Calabar foi colhido
e às águas do Calabar não voltou decerto

Nas margens do Congo foi caçado
e às margens do Congo não tornou decerto

Da nascente do Ogoué chegou um dia
e à foz do Ogoué não voltou jamais.

Eu que em Libreville não descobri a aldeia
do meu primeiro avô
meu eterno continental avô

Eu, a peregrina que não encontrou o caminho para Juffure
Eu, a nómada que regressará sempre a Juffure.

in Lima, Conceição; A Dolorosa Raiz do Micondó, ed. Caminho

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