1.
RECONSTITUIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas
são cinco milhões, o dia nasce, elas abrem os estores. Elas cortam
o pão e fazem café. Elas escrevem a divisão de tarefas para o
resto da semana. Elas picam cebolas e descascam batatas. Elas fazem
panelas de sopa que congelam em pequenas caixas de plástico para
vários dias. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as
crianças. Elas enchem lancheiras e pastas de escola. Elas fazem três
máquinas com os lençóis e as camisas que hão-de sujar-se outra
vez. Elas aspiram o chão e correm com os insectos para que não
venham adoecer os seus enquanto dormem. Elas fazem contas complicadas
para saber onde são os supermercados mais baratos. Elas contam
cêntimos. Elas criam páginas de facebook onde vendem os velhos
cachecóis de malha que a avó lhes ensinou a fazer. Elas trocam
tutoriais sobre comida japonesa. Elas fazem limpezas em cinco casas
diferentes e mais dois escritórios. Elas sairam de casa às 4 da
manhã. Elas correm esbaforidas para não perder o comboio, o
autocarro e o barco. Elas já contam hoje 17 horas de trabalho. Elas
pousam o casaco nas costas da amiga e trocam saudades em crioulo de
países mais quentes. Elas têm habilitações a mais para trabalhar
naquela loja. Elas não fizeram o nono ano porque na altura a mãe
precisava que elas fossem trabalhar. Elas pousam os sacos das compras
e abrem a porta com a mão vermelha. Elas acendem o lume. Elas mexem
o arroz com um garfo. Elas enchem os pratos. Elas pousam o alguidar
na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama. Elas
também dormem.
2.
REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas
decifram pequenos pequenos sinais num aparelho de plástico que lhes
diz que já vai adiantado. Elas compram roupa nova. Elas enjoam a
vomitar na pia. Elas contam às amigas antes de contar à mãe. Elas
riem. Elas angustiam-se. Elas tomam decisões sozinhas. Elas
coleccionam gorros minúsculos de todas as cores. Elas choram. Elas
andam descalças que os pés já não cabem no calçado. Elas brigam
no trabalho para ir à consulta médica. Elas não fazem preparação
para o parto porque não têm tempo nem paciência. Elas urram. Elas
levam na mala da maternidade 30 cremes diferentes. Elas ficam na
Maternidade poucos dias porque as camas são poucas e o Estado
precisa de fazer dieta. Elas são clientes dos blogs de troca de
roupa e de brinquedos. Elas e eles cantam baixinho a meio da noite a
niná -lo. Elas e eles trocam fraldas. Elas lavam. Elas carregam ao
colo. Elas ouvem a encarregada dizer que o leite em pó é que
alimenta, que se deixe disso que o dela também não mamou. Elas
assoam narizes. Elas espreitam desconfiadas por baixo do Hijad
enquanto esperam pela vacina mas abrem um sorriso rasgado para o bebé
ao seu lado. Elas lavam joelhos com água morna. Elas recebem da mãe
calções e bibes bordados à mão. Elas mordem os beiços e torcem
as mãos, o emprego perdido se a febre não desce e faltam mais um
dia. Elas limpam rabos. Elas dão os parabéns ao colega que subiu na
carreira. Elas guardam uma madeixita entre dois trapos de gaze. Elas
talham um vestido para uma barbie muito loira com a cintura do mesmo
tamanho do pescoço.
3.
PRODUÇÃO
Elas
estão na lota de peixe desde o tempo em que subiam para cima de um
caixote, que ainda eram pequenas para chegar à bancada. Elas vieram
de um país frio, que já viu melhores dias, para trabalhar 16 horas
nos campos do Alentejo. Mondam, os dedos tolhidos de frieira e
urtiga. Elas fazem descer a lâmina de cortar o coiro. Elas inserem
incontáveis micro parafusos num aparelho que nunca vão usar. Elas
obedecem às tendinites que já não as deixam pegar nos netos ao
colo. Elas fecham num dia as pregas de papel de mil pacotes de
bolacha. Elas acertam em duzentos casacos a postura da manga onde
cravar o botão. As avós delas ouviram a matraca de dez teares
enquanto a peça crescia diante, o fio amansado de braço a braço
aberto. Cortaram os dedos nas primeiras vinte cinco latas até
calejar bem. Elas fizeram a agulha passar para cá e lá em cruz na
tela do tapete. Elas vigiam a última fieira de garrafas, caladas, à
espera da hora da saída. Elas conhecem de cor o nome das colegas de
há trinta e muitos anos na fábrica, e decoram o nome das novas
contratadas.
4.
SERVIÇOS
Elas
servem cafés e meias-de-leite. Elas atendem o cliente queixoso e
passam ao colega mais velho a vigésima chamada. Elas vendem bilhetes
metidas numa caixa de vidro. Elas teclam palavras que não entendem.
Elas arquivam, por ordem alfabética se faz favor. Elas engolem em
seco e congelam a matrícula da Universidade nesse ano. Elas fazem um
risco preto nos olhos e enfiam-se em skiny-jeans dois números abaixo
do seu que é assim que o dress code da loja exige. Elas vão outra
vez buscar as botas verdes que a senhora viu no catálogo online.
Elas deviam ter mais ideias e serem mais criativas e pró-activas, e
empreendedoras já agora. Elas aspiram o pó de doze assoalhadas e
cento e dez degraus de alcatifa. Elas têm uma reforma baixa. Elas
almoçam um galão e um pão com queijo. Elas entram, há mais 40
anos na praça e no mercado manhã cedo. Elas regateiam com as
ciganas. Elas acertam as bainhas de joelhos, a boca cheia de
alfinetes. Elas soletram as cores em português com o filho pequeno
que desarruma as prateleiras da loja chinesa. Elas põem trinta e
duas arrastadeiras e tiram sessenta temperaturas. Elas são
castigadas pela chefe que lhes tira a pausa para ir à casa de banho.
Elas arrancam pêlos e pintam unhas e tingem as mãos de tinta do
cabelo.
5.
TRANSMISSÃO DE IDEOLOGIA
Coisas
que elas dizem:
— Isso
são coisas de menina. Não sejas maricas!
— É
tudo cor-de-rosa! Eu gostava muito da Barbie, ela também vai gostar.
— Eu
até acho bem, mas ele não está assim muito de acordo.
— Estuda,
que se tiveres um bom emprego sempre é uma ajuda.
— Tu
lês demais, arranja-te, vamos sair.
— Ganhas
menos, mas sempre tens mais tempo para os miúdos.
— Olha
que isto lá fora está melhor, se ele tem lá emprego tens de ir com
ele.
— Achas
que isto é altura para ter filhos?! Não podes dar-te ao luxo de
perder o trabalho.
— Ela
também não tem paciência nenhuma com ele! Coitado!
— Há
algumas que gostam, é um trabalho como os outros.
— Sei
lá em quem vou votar, acho que vou votar nela, que é mulher.
— Isto
já vai do destino de cada um.
— Não
tens sorte nenhuma mulher…
— Eu
não sei se é bruxa...mas ela foi lá e pagou, e aquilo resolveu-se.
— Deus
não quiz.
— Sabes
bem que eu não sou dessas.
— Estás
a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— A
minha filha sempre quis ter tudo, assim não dá, não é verdade?
— Deixa-te
disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Estava
tudo em saldos, comprei dois vestidos e um top muito giro.
— Sempre
dá para pagar a luz.
— Já
dizia a minha avó: cada um no seu lugar, sempre há-de haver pobres
e ricos.
— Sempre
é homem.
6.
PRODUÇÃO DE DESEJO
Elas
olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas precisam de ficar
bem de biquíni daqui a dois meses. Elas suspiram por um rapaz
aloirado, por uma gabardine vermelha, um anel com pérola. Elas
sonham três noites a fio com um homem que só viram de relance à
porta do café. Elas aceitam o café que a tia lhes oferece e
explicam devagar que a amiga com quem moram não é só a a amiga com
quem moram. Elas trazem no saco das compras uma pequena caixa de
plástico que serve para pintar a borda dos olhos de azul. Elas colam
pequenos bocados coloridos na ponta das unhas. Elas não comem
queques depois das seis. Porque engordam. Elas partilham um vídeo de
como é que se fazem cup cakes. Elas anseiam pela próxima temporada
da série que já passou nos Estados Unidos. Elas namoram muito. Elas
namoram pouco. Elas não dormem a pensar na decoração da casa da
amiga. Elas pintam os primeiros cabelos brancos. Elas gritam a
despropósito e agarram-se aos filhos acabados de sovar. Elas pagam a
prestação da moto ao que lhes bate. Elas não falam dessas coisas.
Elas ouvem os gritos da vizinha, e dizem ao marido que é desta vez
que telefonam para a Polícia. Elas lêem na banca de revistas “
Mais de 25 mulheres mortas só este ano”, “Como conquistar um
homem em 90 dias”, “Perca 10 quilos em duas semanas”, “Como
gerir os filhos e o emprego – voltamos às super mulheres”. Elas
chamam de noite nomes que não vêm. Elas ficam absortas com a mola
da roupa entre os dentes a olhar o gato sentado no telhado entre as
sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
7.
REVOLUÇÃO
Elas fizeram greve e pararam a escola e o hospital. Elas exigiram 35 horas sem perda de salário. Elas pintaram num grande pano “Propinas Não!”. Elas organizaram a comissão que não deixou fechar o centro de saúde. Elas brigaram em casa e convenceram o marido e a avó que era mesmo preciso fechar a escola da miúda a cadeado. Elas gritaram à vizinha que era fascista, mas trouxeram-na na camioneta na manifestação seguinte. Elas aprenderam a dizer, há muitos anos, salário igual e creches e cantinas. Elas foram estudar para uma cidade muito longe. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas fizeram pequeno o Terreiro do Paço. Elas tinham contrato de seis meses, e fizeram greve. Elas disseram, de novo, à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas sonharam, nessa noite, com a greve pela cantina, já lá vão 42 anos. Elas partiram um ovo em quatro partes e ficaram a olhar, muito tempo, para a salada de feijão frade que meteram na lancheira que a filha mais nova levou para o call center. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas mas choraram ao voltar do aeroporto. Elas choraram de ver o pai guerrear com o filho. Elas gostam cada vez menos de ver a desgraça que vai nos telejornais. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas decidiram que “desta vez não iam votar nos mesmos” e dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa e elegeram a colega mais nova para delegada sindical. Elas contaram à neta como costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à sogra, segure-me aqui os cachopos, que hoje vamos de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Foi a avó delas que veio dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada, que estendeu roupa a cantar, com as armas que tinha na mão, que disse TU às pessoas com estudos e aos outros homens. A que acordou as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Elas fizeram greve e pararam a escola e o hospital. Elas exigiram 35 horas sem perda de salário. Elas pintaram num grande pano “Propinas Não!”. Elas organizaram a comissão que não deixou fechar o centro de saúde. Elas brigaram em casa e convenceram o marido e a avó que era mesmo preciso fechar a escola da miúda a cadeado. Elas gritaram à vizinha que era fascista, mas trouxeram-na na camioneta na manifestação seguinte. Elas aprenderam a dizer, há muitos anos, salário igual e creches e cantinas. Elas foram estudar para uma cidade muito longe. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas fizeram pequeno o Terreiro do Paço. Elas tinham contrato de seis meses, e fizeram greve. Elas disseram, de novo, à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas sonharam, nessa noite, com a greve pela cantina, já lá vão 42 anos. Elas partiram um ovo em quatro partes e ficaram a olhar, muito tempo, para a salada de feijão frade que meteram na lancheira que a filha mais nova levou para o call center. Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas mas choraram ao voltar do aeroporto. Elas choraram de ver o pai guerrear com o filho. Elas gostam cada vez menos de ver a desgraça que vai nos telejornais. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas decidiram que “desta vez não iam votar nos mesmos” e dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa e elegeram a colega mais nova para delegada sindical. Elas contaram à neta como costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à sogra, segure-me aqui os cachopos, que hoje vamos de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Foi a avó delas que veio dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada, que estendeu roupa a cantar, com as armas que tinha na mão, que disse TU às pessoas com estudos e aos outros homens. A que acordou as bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Anabela Laranjeira