Em 2002, a primeira noite dos primeiros dias em Barcelona, foi passada numa festa popular. Os copos azuis de plástico duro tinham uma inscrição pela liberdade dos presos políticos. À data achei exagerado falar-se de presos políticos. Era 2002.
A 15 de Fevereiro de 2003 saí à rua, com mais três milhões de pessoas. Os EUA invadiam o Iraque e durante meses na minha faculdade, nas lojas, nos cafés, cartazes e faixas diziam não à guerra. Passei pela praça da universidade e vi cargas policiais e manifestantes detidos, soltos no mesmo dia. Mais uma vez achei exagerada a expressão.
Entretanto, desde 2005, passo dias a conhecer esquadras de todo o país ao lado de jovens camaradas que pintam faixas, distribuem panfletos, pintam murais.
Em jeito de brincadeira, em dias de luta (que os são todos) digo estar de piquete. Pelo país percorro salas de audiências com eles, onde são questionados por magistrados, advogados, por mim. Têm de dizer quem são, o que fazem, quanto ganham, a sua militância, porque fazem propaganda política, como é o seu ambiente familiar. Muitos são interrogados pela segurança social. O tribunal quer aferir da sua integridade.
Entretanto, no sofá, muitos escrevem sobre liberdades e sobre a sua opressão. Uns concordam e pedem mão de ferro, outros criticam e indignam-se, outros nem querem saber. Da direita à esquerda, todos falam sobre tudo, mas, nestes casos, como são comunistas, raros são os que falam do assunto se o não forem. Mas todos são os supremos defensores da liberdade (individual, colectiva, ou a que der mais jeito).
Enquanto isso, muitos dias, os camaradas recebem acusações de câmaras, defendem-se, e continuam a defender a sua liberdade e a dos outros.
Enquanto isso, as ausências são faladas, Hollande é sempre tema.
Enquanto isso eu durmo cada vez pior.
Enquanto isso quem tem as suas liberdades cívicas limitadas são os meus camaradas. Não podem ausentar-se sem comunicar aos tribunais. Não podem mudar a morada. As autoridades têm de saber onde estão. A segurança social pode ir às suas escolas. No trabalho sabem que são arguidos.
Enquanto isso, esta semana, a Ana, que trabalha para poder estudar, que foi despida e insultada numa esquadra, que na terça se vai manifestar, na quarta tem que mandar uma carta para o tribunal porque tem um processo-crime contra ela porque defendeu a escola pública e gratuita.
Enquanto isso, sei que tenho muito ainda a aprender sobre regimes democráticos. E que as leis que me exigiram 7 anos (e cujo estudo abandonei temporariamente porque não tenho dinheiro para pagar o mestrado) precisam desses meus camaradas para que ninguém as esqueça. Porque eles exercem os direitos ali previstos e pagam o preço.
Todos os dias.
E nunca o termo político me pareceu tão brando, quando a realidade ultrapassa a ficção dos blogues, das redes sociais, dos livros e do pensamento.
Lúcia Gomes
A 15 de Fevereiro de 2003 saí à rua, com mais três milhões de pessoas. Os EUA invadiam o Iraque e durante meses na minha faculdade, nas lojas, nos cafés, cartazes e faixas diziam não à guerra. Passei pela praça da universidade e vi cargas policiais e manifestantes detidos, soltos no mesmo dia. Mais uma vez achei exagerada a expressão.
Entretanto, desde 2005, passo dias a conhecer esquadras de todo o país ao lado de jovens camaradas que pintam faixas, distribuem panfletos, pintam murais.
Em jeito de brincadeira, em dias de luta (que os são todos) digo estar de piquete. Pelo país percorro salas de audiências com eles, onde são questionados por magistrados, advogados, por mim. Têm de dizer quem são, o que fazem, quanto ganham, a sua militância, porque fazem propaganda política, como é o seu ambiente familiar. Muitos são interrogados pela segurança social. O tribunal quer aferir da sua integridade.
Entretanto, no sofá, muitos escrevem sobre liberdades e sobre a sua opressão. Uns concordam e pedem mão de ferro, outros criticam e indignam-se, outros nem querem saber. Da direita à esquerda, todos falam sobre tudo, mas, nestes casos, como são comunistas, raros são os que falam do assunto se o não forem. Mas todos são os supremos defensores da liberdade (individual, colectiva, ou a que der mais jeito).
Enquanto isso, muitos dias, os camaradas recebem acusações de câmaras, defendem-se, e continuam a defender a sua liberdade e a dos outros.
Enquanto isso, as ausências são faladas, Hollande é sempre tema.
Enquanto isso eu durmo cada vez pior.
Enquanto isso quem tem as suas liberdades cívicas limitadas são os meus camaradas. Não podem ausentar-se sem comunicar aos tribunais. Não podem mudar a morada. As autoridades têm de saber onde estão. A segurança social pode ir às suas escolas. No trabalho sabem que são arguidos.
Enquanto isso, esta semana, a Ana, que trabalha para poder estudar, que foi despida e insultada numa esquadra, que na terça se vai manifestar, na quarta tem que mandar uma carta para o tribunal porque tem um processo-crime contra ela porque defendeu a escola pública e gratuita.
Enquanto isso, sei que tenho muito ainda a aprender sobre regimes democráticos. E que as leis que me exigiram 7 anos (e cujo estudo abandonei temporariamente porque não tenho dinheiro para pagar o mestrado) precisam desses meus camaradas para que ninguém as esqueça. Porque eles exercem os direitos ali previstos e pagam o preço.
Todos os dias.
E nunca o termo político me pareceu tão brando, quando a realidade ultrapassa a ficção dos blogues, das redes sociais, dos livros e do pensamento.
Lúcia Gomes
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