30/12/11

Revolução


Elas fizeram greves de braços caidos


Elas brigaram em casa 
para ir ao Sindicato e à Junta

Elas gritaram à vizinha que era  fascista

Elas souberam dizer
salário igual e creches e cantinas

Elas vieram para a rua de encarnado

Elas foram pedir para ali
uma estrada e canos de água

Elas gritaram muito

Elas encheram as ruas de cravos

Elas disseram à mãe e à sogra que
isso era dantes

Elas trouxeram alento e sopa
aos quartéis e à rua

Elas foram para as portas de armas
com os filhos ao colo

Elas ouviram falar de uma grande mudança
que ia entrar pelas casas

Elas choraram no cais 
agarradas aos filhos que vinham da guerra

Elas choraram
de ver o pai a guerrear com o filho

Elas tiveram medo e foram e não foram

Elas aprenderam a mexer nos livros de contas
e nas alfaias das herdades abandonadas

Elas dobraram em quatro um papel
que levava dentro uma cruzinha laboriosa  

Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa
a ver como podia ser sem os patrões

Elas levantaram um braço
nas grandes assembleias

Elas costuraram bandeiras e bordaram 
a fio amarelo pequenas foices e martelos

Elas disseram à mãe,
segure-me aqui os cachopos, senhora,
que a gente vai de camioneta a Lisboa
dizer-lhes como é 

Elas vieram dos arrabaldes
com o fogão à cabeça
ocupar uma parte de casa fechada

Elas estenderam roupa a cantar
com as armas que temos na mão

Elas diziam tu às pessoas com estudos
e aos outros  homens

Elas iam e não sabiam para onde, mas iam

Elas acendem o lume

Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado
São elas que acordam   pela manhã as bestas,
os homens e as crianças adormecidas.

Maria Velho da Costa

o nosso corpo é forma geométrica
moldável por excelência
seus ritmos de andamento variam
consoante teor de energia armazenado
-embora não haja uma relação de proporção directa-
corpo fustigado andantemente veloz
depósito cheio de energia?
Ou piloto automático?
Corpo macerado vagaroso
Depósito ausente de combustível?
Calibração entre as velocidades?
Carburação

B.B. Pásion - poemas das vísceras

24/12/11

O consumismo destrói o sagrado

A estação dos Natais comercializados chegou. Para quase toda a gente - fora os miseráveis , o que faz muitas excepções - é uma paragem quente e clara no Inverno cinzento. Para a maioria dos celebrantes de hoje, a grande festa cristã fica limitada a dois grandes ritos: comprar, de maneira mais ou menos compulsiva, objectos úteis ou não, e empaturrar-se a si e às pessoas da sua intimidade, numa mistura indestrinçável de sentimentos em que entram igualmente a vontade de dar prazer, a ostentação e a necessidade de se divertir. E não esquecemos os pinheiros, símbolos antiquíssimos que são da perenidade do mundo vegetal, sempre verdes, trazidos da floresta para acabarem morrendo ao calor dos fogões, e os teleféricos despejando esquiadores na neve inviolada. 
Embora não sendo nem católica (excepto de nascimento e tradição), nem protestante (excepto  por algumas leituras e influências de alguns grandes exemplos), nem mesmo cristã no sentido pleno do termo, nem por isso me sinto menos levada a celebrar esta festa tão rica de significados e o seu cortejo de festas menores, o São Nicolau e a Santa Lúcia do Norte, a Calendária e os Reis. Mas limitemo-nos ao Natal, esta festa que é de nós todos. Trata-se de um nascimento, de um nascimento como todos deveriam ser, o de uma criança esperada com amor e respeito, trazendo em si as esperanças do mundo. Trata-se dos pobres: uma velha balada francesa canta Maria e José procurando timidamente em Belém uma hospedaria para as suas posses, sempre desprezados em favor de clientes mais ricos e reluzentes e por fim insultados por um patrão que "detesta a pobralhada". É a festa dos homens de boa vontade, como diria uma admirável fórmula que infelizmente já nem sempre se encontra nas versões modernas dos Evangelhos, desde a serva surda-muda dos cantos da Idade Média que ajudou Maria no parto, até ao José aquecendo as fraldas do recém-nascido diante de um pequeno fogo, aos pastores cobertos de sebo mas julgados dignos da visita dos anjos. (...)
É a festa da  comunidade humana, porque é, ou será dentro de dias, a dos três Reis, cuja lenda quis que um fosse preto, alegoria viva de todas as raças da Terra, levando ao menino a variedade dos seus dons. É a festa da alegria, mas também da dor, pois que a criança hoje adorada será amanhã o Homem das Dores. É enfim a festa da própria Terra, que nos ícones da Europa de Leste vemos tantas vezes prosternada à entrada da gruta onde o Menino nasceu, a mesma Terra que na sua marcha atravessa neste momento o ponto do solstício de Inverno e nos arrasta a todos para a Primavera. Por esta razão, antes que a Igreja tivesse fixado o nascimento de Cristo nesta data, ela era já, nos tempos antigos, a festa do Sol.
Parece que não é mau lembrar estas coisas que toda a gente sabe e que tantos esquecem.

Marguerite Yourcenar, O Tempo, Esse Grande Escultor, Difel, Lisboa, págs. 105 e 106.


20/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

III

a mulher do tecnocrata
acordou terrivelmente sonhadora. Com um vago
desejo.
Talvez não bem desejo,
apenas veleidade.

Não deve ser do valium.
O comprimido faz ainda mais efeito.

Sentada
com as pernas entreabertas
a cabeça pendida
perpendicular à torre
os olhos vêem o rio descendo
emanando o seu calor
o seu aroma
sua cor amarelada
(e o seu cheiro a mijo)
é consolador
o prazer de entre os rios
até ao topo da torre
no enfraquecimento do leito do rio
a torre ergue-se e ganha
condição bípede
Segue
Deixa o prazer
Amanhã é outro dia

B.B. Pásion - Poemas das vísceras - 26 Setembro 2008                

10/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

II

A mulher de um gestor público,
como um personagem muito complexo de Minkowski,
está e não está preocupada com o seu futuro.

A mulher do gestor público
não está preocupada com o futuro,
a não ser que um tremor de terra deite por terra
a sua conta bancária.

Poema Improvisado da Paisagem da Fotografia

A fotografia
Tinha uma paisagem
Árvores reflectidas
Azul e verde como imagem
Em águas paradas
Pareciam formar apenas um bloco...
Eram dois no entanto
A continuação das pernas dos elementos vegetais
Sobre o elemento líquido (a reflexão)
Assim de repente são
Gaiolas de buinho
Penduradas sobre elemento sideral
Elas podem dizer:
"Virem as minhas irmãs (árvores reflectidas)
de cabeça para baixo
se faz favor".
Bora lá árvores verdadeiras
Ser como são as gaiolas de buinho:
Tocar o céu com os pés na terra.

Exercício imagético:
Perante o enunciado tente construir o esboço da fotografia

B.B. Pásiom, poemas da leveza 

01/12/11

CLICHÉS DE PÉSSIMO GOSTO

I



A mulher do dentista
sofre de super-abundância.

Os anos do dentista são super abundantes
em relação aos de mulher tão juvenil.

Entre todas as coisas possíveis e abundantes,
a mulher do dentista possui um acordeon,
meia dúzia de casacos de pele,
sapatos de pelica e mala cor marron.

A mulher do dentista,
além de possuir uma casa na praia,
um acordeon,
sapatos de pelica,
possui a abundância de um marido dentista.

Um marido dentista, nos dias que correm,
é uma extravagância.

Se sofre, pois, de economia sórdida,
faça à mulher uma corte romântica.

(continua)

in a preços de ocasião, eduarda chiote, ed. etc.